Em seguimento ao meu último texto deixado neste blogue, tive vontade de dar continuidade à história, que se uns conhecem, outros nem tanto, e por isso aqui deixo o que escrevi ainda sobre o meu pai, quando ele mostrava um cansaço e esforço anormal nas provas, decorria o ano de 2001.
"O prazer de ser o último"
"Maria fez com que o pai começasse a correr. Ela atleta desde sempre, ele, nunca tinha corrido na vida. Começou com 62 anos e nunca mais largou. Com a entrada na reforma, a corrida deu-lhe um sentido para a vida.
Após três anos neste mundo da corrida, hoje o pai anda cansado, lesionado, doente talvez. Mas não deixa de correr. Sente que se parar, não irá voltar a recomeçar. Ele tem visto isso em tantos colegas do seu escalão! Por isso insiste e não desiste! Só que inevitavelmente, vai agravando o seu estado, e a sua debilidade é visível para todos, acentuada pelos seus cabelos brancos e rosto estragado pelos anos.
Maria já não sabe o que fazer perante a relutância do pai em consultar um médico.
O pai, aquele homem forte que lhe deu a vida, que a ensinou e amparou tantas vezes, é agora um velhote fraco, cansado e teimoso! Arrasta-se nas corridas. Maria teme o pior em cada prova. Mas poderá ela tirar-lhe essa alegria?
Num domingo frio mas soalheiro, ela decide acompanhá-lo numa prova e constata de muito perto o estado em que ele está. Anima-o, incentiva-o, dá-lhe força, e perante as suas dificuldades propõe-lhe a desistência, que ele recusa teimosamente, e então Maria continua a apoiá-lo até à meta.
Vai rastejando pelo asfalto.
Nunca sabemos quando é a nossa última prova, o nosso último dia. A vida prega-nos partidas, e depois, quando já é tarde demais, inutilmente homenageamos quem já cá não está.
Naquele domingo Maria disse ao pai que o amava, que apesar de tantos conflitos ao longo da vida, afinal estavam de novo juntos, na corrida e na vida, e naquela prova ela prescindiu de um hipotético 2º ou 3º lugar, e ficou classificada em última, juntamente com o pai.
Cortaram a meta de mão dada, como na sua (dele) primeira prova (em muito melhor condição física), e alguém estende uma medalha à Maria, que pensando que era só para as mulheres, a estende de imediato ao pai.
Nada a premiaria melhor do que a sensação tida naquela chegada à meta. Mas afinal a medalha era de presença. Uma medalha igualzinha à do ano anterior, mas que para a Maria representa o prazer de ser a última e sentir-se a melhor do mundo por ter acompanhado e ajudado o pai naquilo que ele mais gosta. E quem sabe, se pela última vez...
Ana Pereira, Primavera 2001"
Não, esta prova não foi a sua última prova. Chegou ainda à sua 137ª prova na sua curta carreira, na S.Silvestre da Amadora, a 31 de Dezembro de 2001, essa sim, a última vez em que correu, que coincidiu com a última prova da filha no seu estado civil de casada...
Depois disso, foi forçado a ir ao médico. Diagnosticaram-lhe uma hérnia inguinal, à qual teria de ser operado. De imediato lhe proíbem a corrida enquanto aguarda a operação, o que só conseguiu quando recorreu aos serviços de saúde privados, e já nos exames e análises habituais para a preparação de uma cirurgia em segurança, eis que lhe é detectado a fatalidade que lhe modificaria de novo a sua vida para sempre: Miocardiopatia dilatada com insuficiência cardíaca, donde lhe veio a proibição de correr, ou de praticar qualquer exercício físico que lhe exigisse um esforço cardiovascular, com o risco de arritmias e morte súbita. Poderia apenas... caminhar sem esforço.
Sábado, domingo e hoje 2ª feira: não houve treino nenhum...
Amanhã seguir-se-á ainda a continuidade da história do Melro com outro texto desta sua filha, que ele não tem outra igual ou diferente.
Até amanhã
3 comentários:
Que história comovente, fico a aguardar o resto.
Um beijinho.
Que bela definição de família!´
Parabéns a ambos.
bjs
MPaiva
Obrigada ao Joaquim Adelino e ao Miguel Paiva.
Estes textos já não são novos, e a história já vem de trás, mas apeteceu-me trazê-la à luz do dia de novo. Porque o meu pai merece, e muitos não a conheciam.
Os laços não sendo novos, foram redescobertos já na minha idade adulta. Posso dizer que descobri o meu pai apenas depois de adulta. E também aqui, nesta área, tudo isto mostra que para nada com excepção da morte... para nada é tarde demais! Estamos sempre a tempo de começar, recomeçar... sempre. Só não vale parar, o que é equivalente a morrer... e morrer em vida é certamente das mortes mais tristes e dolorosas.
Obrigada aos dois pelas vossas palavras, sinceramente agradeço.
Um beijinho também para os dois
Ana Pereira
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