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sábado, 29 de dezembro de 2018

Estórias que as casas nos contam

À força de tantas vezes passar por ela, ela, a casa, acabou por confiar na rapariga e contar. Aos anos que suporta o fardo do segredo, do que aconteceu e se quis apagar e esquecer. Mas há coisas que é impossível apagar ou esquecer.

O António e a Rosa viviam na casa há pouco mais de três anos. Um amor genuíno, puro e rebelde que acabou por convencer os pais e lá os jovens juntaram os trapinhos e viviam maritalmente felizes como poucos. A vida no campo era dura e fosse pelo árduo trabalho ou por imperfeição do corpo da Rosa (sim, já que no varão não se supunha sequer que residisse a causa) a Rosa não emprenhava. E se tal questão não fazia vacilar o seu amor, a verdade é que um certo mau estar se vinha a instalar entre o casal, pressionado pelos familiares e vizinhança e pelo seu próprio ego.

E foi na altura da apanha do milho que tudo aconteceu. Vinham pessoas de fora que ficavam albergadas no palheiro, num piso acima, mesmo por cima dos animais. Eram moços e moças novas, que traziam alegria, reboliço e novidade ao lugar.

A Rosa, de olhos claros e pele escura curtida pelo sol, de sorriso fácil, branco e franco, irradiava alegria e simpatia. Depressa falava com todos, tratava-os pelo nome e adorava conversar e saber coisas de outros lugares e outros costumes. Já o António, rapaz reservado, tímido e pouco falador, limitava-se ao contacto estritamente necessário ao trabalho e não via com bons olhos a simpatia e a admiração que a sua Rosa recebia de todos os forasteiros.

Já se habituara à atenção que a Rosa sempre despertara. Mas desta vez era diferente. Ele sentiu-o pela primeira vez quando, à roda da fogueira, cá fora, à noite, findo o dia de trabalho, a Rosa dançava numa roda, como as outras moças, de mão em mão, e rodopiando as saias e dando uma volta sobre si própria, acaba de encontro ao peito daquele estranho, alto e bonito. Com um sinal na face direita em forma de um minúsculo coração, de olhos de um castanho claro cor de mel, cabelo louro e camisa branca amarrotada, destacava-se de todos os outros. Ampara a Rosa num gesto natural mas num abraço exageradamente demorado aos olhos do António. Por um instante, parecia que o tempo parara e o casal ficara abraçado de olhos nos olhos e sorriso nos lábios por uma eternidade.

Os dias passavam e o António distanciava-se mais e mais, muito mais rapidamente nestes dias do que nos últimos meses de vida em comum do casal. Mal humorado, sem palavras mas roído de ciúme. A Rosa, alegre por natureza, ignora os sinais e foi sempre igual a si própria e quando deu por si, estava no milheiral, embrulhada com o forasteiro alto e bonito e peito que parecia desenhado à medida para ela se aninhar. Os corpos despidos, o toque da pele, os beijos trocados, as carícias prometidas nos olhares trocados nos dias anteriores, foram completamente cumpridas em cada milímetro de pele dos seus corpos. 

O trabalho no campo avançava e a Rosa sabia que o forasteiro partiria em breve. Alheia ao mau humor do António e à sua crescente e aparente indiferença, ou até incentivada por ela, a Rosa voltou a procurar o forasteiro e amou-o com o corpo e a alma até ao êxtase, por entre os fardos de palha e os balidos dos animais. 

O dia da partida chegou e com ela se abateu uma tristeza sobre a Rosa, no entanto feliz pelo que vivera. O António, de novo sozinho com a Rosa, parecia agora mais feliz, mais descansado e bem disposto, agora aparentemente indiferente à tristeza da Rosa.

Os dias do casal voltaram ao normal, e o António chegou mesmo a voltar a procurar a Rosa, que de olhos fechados e punhos cerrados, se deixou possuir, enquanto sonhava com outro rosto, outra boca, outras mãos, e uma lágrima se soltava.

Várias semanas se passaram e o ventre da Rosa começou a crescer. O António, radiante, parecia feliz como nunca, de uma alegria tão contagiante que a própria Rosa chegou a voltar a parecer feliz.

Depois...depois chegou o dia do parto. A curiosa mandada chamar da vizinhança mais próxima mandou sair o António enquanto a Rosa gritava de pernas abertas. 

Nervoso o António, aguardava cá fora, a antecipar a melhor alegria da sua vida: um filho, finalmente. Varão, claro, nem outra coisa seria de esperar. Por fim os gritos da Rosa acalmaram e ouve-se o choro de uma criança. É um rapaz! É um rapaz! Grita a curiosa.

O António entra disparado na divisão e aproxima-se da Rosa, a certificar-se que estava bem, ao mesmo tempo que deita um olho ao recém-nascido embrulhado num lençol branco. Tudo sereno. A Rosa sorri, o petiz geme como um gatinho e o António sorri também e enterra o rosto no peito de Rosa, e quando o levanta a Rosa jura que lhe viu uma lágrima a escapar-se. De alegria. 

A vizinha já saíra e o casal está agora só com o petiz. Os três e a casa por testemunha.
A Rosa, estende o bebé embrulhado ao António. Pega-lhe, diz-lhe. E o António pegou, aconchegando-o no colo. Afasta um pouco o lençol para lhe vislumbrar o rosto e nesse instante...Não! Grita, ao descobrir na face direita um minúsculo sinal em forma de coração na minúscula face direita do bebé...Nãaaoooo!

A Rosa grita desesperada enquanto o António eleva o recém nascido no ar, já desembrulhado e a chorar desalmadamente, despido, avermelhado e cabeçudo, com a cabeça a tombar para trás, numa posição estranha e perigosa, e o exibe mesmo em frente da cara da mãe, olha, olha o que fizeste, sua cabra! Nãoooo, grita a Rosa, e de navalha em punho o António desventra o cachopo, numa chacina nunca vista. Gritos ensurdecedores da Rosa misturados com o choro do menino que se calaram já, e agora só a Rosa, a Rosa e os gritos de quem não suporta a dor na alma e já endoideceu e pede para morrer também. Os gritos da Rosa, o sangue e o palavreado enlouquecido do António enchem a casa e entranham-se nas suas paredes, atravessando-as até às mais profundas estruturas e marcando-a para sempre, como machado espetado fundo num tronco.

No dia seguinte, quando as vizinhas vieram para visitar a mãe e o petiz, encontraram uma mulher de boca exageradamente aberta num grito agora mudo e olhos vidrados fixos no tecto da casa, gritando em silêncio o horror vivido, e um recém nascido sobre ela, ambos desventrados numa poça de sangue, e um homem pendurado numa corda na árvore defronte da casa, a balançar levemente, ouvindo-se apenas o subtil ranger da corda no tronco da árvore, para cá e para lá, para cá e para lá, conforme o corpo oscilava num balançar trágico e triste.

E ainda hoje, em dias em que por um motivo qualquer mais nada se ouve, há quem ali páre, à sombra da árvore, para descansar ou beber água do cantil, e garanta que ainda ouve o ranger da corda, a balançar presa no tronco, a suportar o peso de um corpo que balança levemente, para cá e para lá, para cá e para lá.








quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Banco de Jardim


Passo por ele, hoje só, triste e vazio. A combinar com o tempo cinzento deste Inverno e desta manhã. A aguardar pelos Domingos de Sol que trazem as famílias felizes com os seus petizes irrequietos que apenas se aproximam dele (do Banco de Jardim) para darem uma dentada no lanche que a avó trouxe, entre um chuto na bola e uma corrida pela relva para apanhar de novo os amigos. Aguarda pacientemente por outros dias, de Sol, para ser ocupado pelos idosos conversadores, pelos desempregados a arrastar os pés a chorar a triste sina, enquanto fazem uma pausa no Banco de Jardim. Entre a miséria da vida e o regresso a casa, é o Banco de Jardim que os apoia, segura, escuta e abraça.
Aguarda também por outros dias em que o Jardim se enche de jovens adolescentes, que escapam entre intervalos das aulas a viverem os primeiros amores. Os primeiros beijos trocados no Banco de Jardim. E outros amores maduros também. Silenciosamente, o Banco de Jardim guarda segredos como ninguém.

Hoje o dia está triste e o Banco de Jardim também. Ainda assim, ampara as folhas caídas das árvores. Vê-me passar por ele, o Banco de Jardim, a caminhar. Não paro. Caminho a ritmo regular, a sentir cada passo seguro e bem estudado antecipadamente, com precaução, como se cada passada, desde o levantar do pé até pousar no chão um pouco mais adiante fosse uma manobra perigosa e carecesse de projecto avançado de física e engenharia. De dentes e punhos cerrados nalguns deles, a suportar as dores ou apenas a temê-las. Dores normais, diz o médico. Se é normal, avancemos. E se caminhar é preciso, caminhemos.

E o Banco de Jardim é hoje a minha companhia. E eu passo, olho-o e sigo em silêncio. Nem os pássaros se ouvem cantar hoje…e os segredos que eu hoje conto ao Banco de Jardim são um sussurro demasiado vago e imperceptível. No entanto, sei que ele amanhã se vai recordar deste dia e estes segredos, ficarão com ele bem guardados, como todos os outros que já lhe confiei, de quando me levantava às cinco da manhã e ia Correr, e ele, era um ponto de encontro, um local seguro, onde muitas vezes fazia exercícios de alongamento depois dos treinos madrugadores. Ele diz-me que adorava esses momentos e que tem saudades. Confesso-lhe baixinho que eu também…