Pesquisar neste blogue

domingo, 29 de março de 2020

Covid-19…Portugal somos nós! - Fica em Casa





Covid-19…Portugal somos nós!

Uma semana em casa. Tenho a possibilidade de trabalhar em casa. Foi-me dada e permitida essa opção, como possível que era e como tinha de ser, se é que há alguma responsabilidade, sensatez e humanidade no espírito de quem manda. E há. E eu faço-o. Com empenho e entrega, com tanta ou mais do que se estivesse no escritório, supostamente observada, vigiada e controlada. Agradeço a confiança. E respondo. Respondo como sou. Simplesmente como sou.

Desde Agosto, com provações sucessivas que a vida me colocou no caminho. Caminho ladeado de flores, árvores, sol e sombra, pedras e terra batida. Caminho. Caminho que sigo, com medos e dúvidas, lágrimas e risos, mas sem dúvida o único a seguir. O meu. De repente (em Agosto), sem aviso ou preparação, a família passou de dois para quatro. Mais dependentes, mais trabalho, mais responsabilidade e inúmeras alterações de rotinas, ajustes materiais, físicos e emocionais. E ainda sem tudo “arrumado”, móveis ou cabeça, agora isto!

Um inimigo que não se vê, que está lá fora e que nos pode apanhar cada vez que pomos um pé na rua. Ir à rua apenas para o estritamente necessário! Daqui, deste castelo, muralhas altas construídas com sangue e lama, fechamo-nos sem nos fecharmos. Protegemo-nos. Por quem tem de ser protegido, mais que ninguém!

Só esta mulher sai desta casa. Ela e a cadela. Para fazer as necessidades esta e depois aquela para abastecer a despensa e comprar medicamentos, bens imprescindíveis para manter a matilha. Com todos os cuidados, com a humildade de saber que todos os cuidados são poucos e que um azar qualquer e já fomos apanhados e não podemos, pois estaremos a trazer a Morte para casa.

É só disso que se trata. Não querer trazer a Morte para casa a quem me deu a Vida.

Tenho medo, admito e confesso. Mas luto! Luto! Fico em casa e essa é a minha luta, a possível, a que está ao meu alcance e que abraço de coração! É fundamental não parar. Trabalho. Uma gota de água a alimentar a Economia deste país. Eu. Os meus colegas, e tantos outros. Actividades que aparentemente não estão directamente relacionadas com a batalha que todos travamos, mas ainda assim necessárias, uma luta nos bastidores, na sombra mas essencial para que tudo funcione, para que a Economia não colapse.

Tenho medo. O medo…essa emoção que nos apura os sentidos e nos faz recuar ou tomar medidas necessárias à nossa sobrevivência. Escolho a segunda opção. E é disso que se trata, de sobrevivência!

Uma semana em casa, um dia no escritório, quatro de teletrabalho, a lutar com unhas e dentes, nesta aparente inércia e passividade aos olhos desatentos, a descascar batatas, a preparar lanches, almoços e jantares, a manter o essencial, a dar banho a quem não pode, a lavar tachos e roupa e a apresentar propostas para vender material para o país não colapsar. Sou eu. És tu, somos todos nós, a lutar em silêncio, sem holofotes nem palmas. Somos Portugal! Portugal somos nós!

E depois, em casa, fechados, enclausurados a dar um valor inimaginável à liberdade antes garantida e por isso desvalorizada, de sair e apanhar Sol e mar e sal no rosto sem medo, medo de ser apanhado pelo vírus e trazer a morte para casa. Sem medo.

Dias que hão-de voltar. Por ora, é tempo de ficar em casa, tu que a tua profissão e missão te obriga a estar no terreno, a lutar cara a cara, por todos nós, injustamente a dar a cara e o corpo e alma ao diabo, a enfrentar o inimigo de frente e a olhá-lo nos olhos. Cuidem-se todos vós.

E vós, que a vossa profissão não vos exige esse grau de entrega, …por favor, apenas fiquem em casa. Não desvalorizem o inimigo. Não dificultem a luta. Não contribuam para a morte, por favor. Respeitem. A Vida, a vós próprios e respeitem os outros. Os vossos, e os meus, a todos! Quando pensam que sair não faz mal porque não estão com quase ninguém, estão! Garanto-vos que estão! Quando tocam na porta de entrada do prédio, quando respiram o ar que alguém expirou há minutos atrás, quando cumprimentas o vizinho, quando tens um azar e precisas de ajuda médica, garanto-te que está a empatar, a estragar a luta que deveria de ser de todos! Com as armas que cada um tem. E tu…só tens de ficar em casa! E dá valor, que ainda assim, com a depressão a assombrar-te (como se soubesses o que isso é e a maioria de nós não sabe felizmente), garanto-te que é o lado mais fácil desta batalha, que venceremos, mas para isso precisamos que cada um faça a sua parte! Fica em casa!

“Não te vás abaixo
Se o medo rondar.
É só um mau bocado
Que vai passar”

UHF, in “Portugal somos nós”

domingo, 22 de março de 2020

Covid-19



Fiquem em casa

Não me assusta nem encontro nenhum drama em ficar em casa.

Não me assusta viver com os meus dentro de quatro paredes 24 horas por dia, a tropeçarmos uns nos outros, a embirrarmos uns com os outros, mas também a cuidarmos uns dos outros, e ainda assim a tentar descontrair para não sermos vencidos pelo medo, pela ansiedade e pelo pânico. 

É importante a consciencialização, a responsabilidade e a atitude. Compreender o que já se sabe, ou se pensa saber, sobre o vírus, e agir em conformidade para evitarmos que ele nos apanhe e evitar propagá-lo. Quem nos garante que já não nos apanhou e quando “vamos só ali e não faz mal porque vamos sozinhos e não vemos ninguém”, não estamos a contribuir para a sua propagação? O tempo de vida do vírus nas diversas superfícies é assustador, isso sim, assusta-me! Nas paredes, no solo, nas portas, nos corrimãos, nas tampas do lixo, na porta da escada, no ar! Isso sim assusta-me! Assusta-me sim ter de sair e poder trazer o vírus para dentro de casa. Assusta-me a ligeireza com que alguns ainda lidam com o assunto. Assusta-me como agem. Assusta-me porque não compreendem que o seu argumento de “não faz mal porque vamos só ali e não vemos ninguém” é porque muitos “alguéns” ficam em casa! E também precisavam de arejar e fazer alguma outra coisa para manter alguma sanidade mental, acreditem!

Com duas pessoas dentro de portas, que reunem condições que as torna de risco para o Covid-19,  tanto pela idade como pelas patologias, fáceis de “controlar” ao contrário de muitos de quem os filhos se queixam por não compreenderem a importância do “Fica em casa”, as minhas preocupações e cuidados redobram, triplicam, quadruplicam e ainda assim tenho noção que podem ser insuficientes. Só eu saio à rua. Para o que tem de ser. Comida e bens de primeira necessidade (sem esquecer a cerveja, claro, que isto de manter a sanidade mental, aqui é levado muito a sério), medicamentos, levar a cadela a fazer necessidades, levar o lixo. Com mil e um cuidados, mas sei que um pequeno descuido, um gesto automático como levar a mão ao rosto, um vizinho que nos diz bom dia com demasiado entusiasmo e demasiado perto do nosso rosto, um “esquecimento” e um azar, e podemos ser infectados. E de igual modo infectar outros.

Não me assusta “ter tempo”, nem compreendo a dificuldade de muitos em ocupá-lo dentro de casa. 

E a Economia, dirão? E as contas por pagar, dirão…e sei muito bem do que falam, que eu até também as tenho! Mas mortos…de que vale termos as contas pagas? É preciso parar para parar o vírus, manter apenas o estritamente essencial para a sobrevivência das pessoas. Mas e o país?! O país são as pessoas! Sem elas, não há país...

O país...são as pessoas!

Depois…depois…Há-de ficar tudo bem! Mas por agora é preciso atitude, adoptar comportamentos que contribuam para isto parar! 

Por nós, pelos nossos, por vós, pelos vossos, fiquem em casa por favor!
Não é assim tão difícil.


sexta-feira, 20 de março de 2020

A noiva

Estórias de encantar, mas sem encanto

Da saga “Férias 2019”

Capítulo fora de ordem, racional ou outra

A Noiva

Algumas vezes, ao fim do dia, já noite dentro, depois de jantar e da loiça metida na máquina, reuníamo-nos à volta da mesa. Dessa mesma mesa de madeira onde tomávamos as refeições.

A fraca iluminação e as teias de aranha pelos cantos do tecto davam à habitação um toque fantasmagórico, misterioso e caprichoso, ao melhor sabor do fantástico e de filmes de terror.

Os jogos de tabuleiro, descobertos na casa, de entre uma pilha empoeirada de brinquedos e livros velhos, com décadas de uso, mil e uma histórias vividas, ocupavam o centro da mesa e depois de analisados era escolhido um. O papel amarelado, envelhecido pelo tempo e pelo uso, e o cartão amachucado, com vincos de memórias antigas, rugas desenhadas pela vida, incorrigíveis, eram características comuns a todos eles, mil e uma vez manuseados, testemunhas silenciosas de serões passados por ali. Também de noites dolorosas e de dias sombrios. De sangue derramado e de almas trespassadas por lanças de ferro enferrujado e frio. Mas eles não sabiam disso nem poderiam saber.

Naquela noite foi escolhido o Loto e a jovialidade dos jogadores deu vida ao jogo e o jogo deu vida aos jogadores.

Escolhidos os cartões, sobrou um, porque tu, Mãe, jogavas agora outro jogo. Precisamente à mesma hora, a centenas de quilómetros dali, jogavas com a morte e a vida e sorrias num corredor de hospital entre dezenas de outros que como tu, aguardavam uma decisão, uma sala disponível, uma operação, um parecer médico, uma evolução de estado, ou simplesmente a morte se os familiares ali os abandonaram. Porque há muitas formas de morrer, e ali, há já gente morta.

O cartão do Loto que assim sobrara, foi colocado no centro da mesa e prontamente decidido pela nossa menina mais nova, que dormia no quarto da noiva, e que com ela partilhava não só o espaço que era o seu quarto, não o tempo, mas também o nome: Carolina.

Deram início ao jogo e foram saindo os números. A sorte e o azar a brincar connosco. As risadas dos ganhadores, que tinham a sorte por eles e os rostos contrariados, quase amuados, meio a brincar meio a sério de quando os jogadores se viam a perder. A noiva, invisível, mas claramente presente ia ganhando pontos, à medida que os números iam saindo, preenchendo o seu cartão de forma anormal e assustadoramente rápida. E quando só lhe faltava sair um número, uma única peça, deu finalmente a vez aos outros, enganadores e enganados, rijos e sorridentes como petizes apesar da idade avançada de alguns deles.

Ganhou o avô. Foi o primeiro a preencher o cartão. Riu-se como um miúdo. Serão feliz à volta de uma mesa de madeira e de um gasto jogo de Loto. A noiva, só não ganhou porque, verificou-se depois, que a única peça que lhe faltava, era uma peça que simplesmente não estava na caixa. Teria desaparecido no passado e na história da casa e das pessoas que por ali passaram. Distribuídas todas as peças, faltava a única necessária para a noiva preencher o seu cartão: a peça número 77.

Risadas joviais, arrumado o jogo e siga o serão. Sigo para a cozinha. É preciso acabar de lavar as chávenas do café que bebericámos a acompanhar o jogo e bolinhos.

Remeto-me à cozinha e começo a lavar as chávenas. A água a correr, os salpicos e o emaranhado de fios, tomadas duplas e tripas e extensões eléctricas diversas ali tão perto… Num momento em que rodo a torneira, parece-me sentir um ligeiro formigueiro no braço direito. “Ui…não…isto deve ser impressão…isto não pode dar choque!” De seguida vou buscar as restantes chávenas à sala e quando pouso as mãos na pia do lava-loiça, agora cheio de água, entupido pela canalização e escoamento deficiente e nítida e claramente agora, apanho o maior choque eléctrico da minha vida. Grito e afasto-me do lava-loiça. Não é possível, isto não é possível…mas eu senti! Juro que senti!
- Mãe! Gristaste?!
- Sim! Apanhei um choque, saiam daqui, ninguém toque na bancada, afastem-se!
Afastaram-se, tão ou mais assustados que eu.

Pego na esfregona e começo a limpar os pingos de água no chão. A esfregona, farfalhuda, numa dança no chão, em círculos enérgicos que lhe imponho, involuntariamente levanta a cortina que tapa a bilha do gás debaixo do lava-loiças e para meu espanto traz com ela um pequeno objecto que arrasta no chão, preso às suas franjas. É azul e pequeno. E perante a surpresa de todos, é uma peça do loto! Mais especificamente, a peça com o número 77…