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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Há monstros na minha cama - o treino de hoje - Monte Serves

Há monstros na minha cama

Por demasiadas vezes o equipamento para correr, preparado de véspera e ao fundo da cama, fica o resto do dia exactamente como o deixei, as peças ainda dobradas, imaculadas como saem da gaveta, bem cheirosas, apesar das intenções ao deitar serem as melhores e as mais determinadas.

Depois, toca o despertador ou até acordo eu antes dele, e eles, lá estão, a prenderem-me à cama, pesados como pedra tumular, fria e húmida onde viscosas centopeias se passeiam, a impedir-me os movimentos e a esmagar-me o corpo e a mente contra o frio do colchão.

Acorrentam-me, esmagam-se, sufocam-me e asfixiam-me e eu mais uma vez não me levanto para treinar. Tem-se repetido este episódio nos últimos dias, como se de filme de terror enfadonho se tratasse.

Hoje, o medo do episódio se repetir, como um carma, estava lá. Assim como os monstros.

Monstros na minha cama. No meu quarto. Na minha casa. No meu carro quando me cruzo tentadora e desafiadoramente com os camiões no negro do asfalto a uma velocidade considerável. Há monstros em mim.(*)

Hoje foi mais um dia em que o despertador tocou antes das 5 da manhã. E antes que eles despertassem, ainda sem acender a luz ou calar o galo, estrangulando-o, sacudo a roupa da cama para trás com uma violência assustadora. Não! Não vais deixar que despertem sequer! Antes que eles tomassem consciência do que eu tencionava fazer, antes que eles me enleassem com fios de baba como teias firmes tão fortes, frias e duras como o metal das grades da janela de uma prisão, antes que...Upa! E já estou de pé. Um segundo a mais e poderia ser fatal. E depressa me vejo na rua e reencontro os amigos.

Reencontro feliz, sorrio e quase os abraço, grata e feliz, não fosse uma qualquer timidez estúpida. Gosto deles. Gosto mesmo! E se não fossem eles, garantidamente não estaria aqui hoje. Obrigada.

A volta foi calma e por ser calma e todos terem a paciência necessária, não me custou tanto como supus. Nevoeiro denso, temperatura amena e volta ao Monte sem o subir. As ervas estão cobertas de humidade e há lama. Acompanho-os e quando não os acompanho há sempre alguém a puxar por mim calmamente, respeitando as minhas dificuldades.

E assim ao longo de 1h20m em que percorremos 11,800 Km, fui libertando monstros, que afinal sou eu que os prendo, que os alimento, que os faço crescer. 

Terminámos o treino e sinto-me muito mais leve, não propriamente por ter perdido peso (mas também) mas especialmente porque já não carrego tantos monstros. Ou estão mais leves, talvez. Porque todos temos os nossos monstros, mas vivem e crescem em nós apenas se nós os alimentarmos.

3ª feira (e antes disso, claro), vou continuar a exorcização e conto convosco. Obrigada malta!


(*) - quem os não tem?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Trail Centro Vicentino da Serra - Portalegre - 10 de Janeiro de 2016

"O meu Trail Vicentino" ou "Como foi horripilantemente fantástico"

"Os fantasmas que trouxe da Serra de S.Mamede habitam em mim ainda hoje e suspeito mesmo que tenha de lá voltar, para os devolver onde pertencem"

Primeiro foi o desafio lançado por um amigo. O entusiasmo de braço dado com o medo. As dúvidas, a coragem, e as inscrições a decorrerem em bom ritmo e em vias de esgotarem, e quando dei por mim estava inscrita. Não sem ponderação, note-se. Seria o meu maior desafio em termos desportivos. Em Trail seria a maior distância alguma vez percorrida (42 km) assim como em subida acumulada (1687m). No entanto, acreditei que seria possível. Treinei alguma coisa e continuei a acreditar. O espírito seria correr quando pudesse, caminhar quando o desnível e a técnica necessária (de que eu sou uma completa aprendiz) assim o exigisse e  apenas uma nuvenzinha negra me fazia temer poucas coisas mas que poderiam ser as suficientes para me fazer não chegar ao fim: uma queda séria com danos físicos graves, perder-me de forma irrecuperável para a prova e a reacção do corpo ao frio que sabíamos que iria fazer, acompanhado de chuva e vento aliado à longa duração da prova. Um terreno desconhecido portanto, tornando legítimos não digo os medos mas as preocupações.

O grupo Runners da Frente Ribeirinha da Póvoa, sempre presentes, apoio incondicional ao longo dos meses, nos treinos e agora também no dia da prova. Não estava só.















Mas nestas e outras coisas, podemos ter todo o apoio do mundo mas o fundamental somos nós e está em nós. Assim, parti confiante mas também apreensiva confesso.


Ainda sigo uns metros com a Paula Cristina e a Laida, e tento não as perder, mas elas têm outra pedalada.


Tenho de as deixar ir e isto é mesmo assim: cada um tem de fazer a sua prova e eu só aspirava acabar a prova e acabar dentro do tempo limite (8h30m). Acreditava que era possível mas sabia que não podia "descuidar-me" muito, sabendo também que se apertasse muito, pagaria mais tarde. Por isso fui mantendo o meu ritmo confortável, não me preocupando (muito) de ter menos que meia dúzia de atletas atrás de mim. 

A Serra é belíssima. Deslumbra-me em cada passada, em cada trilho, em cada recanto, em cada paisagem, em cada pedra e em cada raíz ultrapassada, em cada riacho atravessado. A chuva foi sendo uma constante. A lama, também. Os riachos quase diria que também. Ia eufórica com tudo aquilo. Trilhos desafiantes (para mim), cordas para nos ajudar a passar os riachos onde a água borbulhava, e em zonas mais inclinadas, e a chuva, sempre a chuva por companhia. Ia deslumbrada com a Serra. Tanto que dou por mim no km 12 e surpreender-me por já ter percorrido tantos kms. Vou bem. A Organização 5 estrelas. Excelentes marcações, tanto que fiz 85% da minha prova sozinha e nunca tive dúvidas por onde seria o caminho a seguir. Corro quando o terreno o permite, caminho nas subidas, sigo com mil cuidados nas descidas assim como nas travessias dos riachos onde fui cair direitinha que nem um fuso, aproveitando o rápido borbulhante das águas e por instantes temi ir parar ao Oceano face à violência das águas, em conjunto com a corrente e as lajes inclinadas. Um braço agarra-me e uns olhos claros perguntam-me se estou bem. E sim, estou. É levantar e seguir e até rir com o cómico da cena. Continuo bem, a usufruir de todo aquele verde, de toda aquela água, quer a da chuva quer a dos riachos. Vou feliz e bem.

Chego sensivelmente a meio da prova (21 km) e vou com 4h14m. É o primeiro alerta. A continuar assim, e dificilmente conseguiria continuar assim pois para além do cansaço se ir acumulando, os últimos 12 km já tinham sido anunciados como terríveis, iria chegar à meta mesmo em cima da hora limite: 8h30m de prova! Assalta-me por essa altura a nítida certeza que não chegaria à meta a tempo. Atitude derrotista ou vamos tentar? Vamos tentar! Chego ao Posto de Abastecimento 3, no km 22. Chove quase torrencialmente. Admiro os membros da organização, debaixo de toldos oscilantes com a chuva e o vento e a simpatia fabulosa. Bons abastecimentos, como fruta, e até bebo um café quente junto com biscoitos. Soube mesmo bem. Um companheiro de prova fica por ali, diz estar com cãimbras. Eu sigo. Agora sozinha e penso alcançar o próximo Posto de Controlo, ao km 29.

Vou bem. Muito bem. Sou eu e a Serra. O vento uiva. As árvores sussurram e dançam no alto. Por vezes protegem-me, por vezes temo que uma se parta e me caia em cima. As luvas ficaram encharcadas e as mãos gelam ainda mais com elas calçadas. O vento e a chuva fustigam-me em zonas desabrigadas. Os lábios gelam. Os pés enterram-se na lama até ao tornozelo. Nem vale a pena escolher o caminho. É seguir em frente. Encontro membros da organização. Falta muito para o próximo posto? 3 ou 4 km, dizem-me mas podem chamar alguém para me vir buscar. Não! Sigo! Gosto desta solidão. Não vejo ninguém atrás nem à frente. Sou eu e a Serra. E o vento. E a chuva. E a terra. E a água a cantar furiosa nos ribeiros. Os trilhos são ribeiros por onde a água corre em sentido contrário ao meu. Vou enganada eu ou é a água que vai? Tento abstrair a mente mas o gelo apodera-se do meu corpo e mal me consigo sentir. Preciso aliviar a bexiga e a custo baixo os calções. Quando os levanto, e vejo que a parte da frente está no lugar, não sei como está atrás. Molhada, fria, não sinto as pernas, o rabo, as mãos...não me sinto simplesmente. A custo lá me certifico que estou vestida e sigo como posso. Mais vento frio a cortar-me as faces. Encontro de novo membros da organização o que se repetiu mais à frente, mais uma vez oferecem ajuda mas eu prefiro seguir. Até ao próximo Abastecimento. Subo ao ponto mais alto da Serra e sinto uma plenitude indescritível. Sempre sozinha. Há uma névoa a envolver a serra, a envolver-me a mim. O ar cada vez mais frio entra-me pelas narinas, percorre as vias respiratórias e roça o coração que estremece. Não estou com frio, não sinto frio, apenas estou fria, gelada ao ponto de quase perder a sensibilidade. Resta a mente e um corpo em automático. Respiro fazendo uma concha com as mãos para dessa forma aquecer as mãos e também tentar que o ar inspirado não seja tão frio. Avanço com dificuldade. No entanto a Serra nunca perdeu o encanto. Nem por um segundo. Bem pelo contrário. Mostra-se como ela é. Ríspida, implacável, magnífica e bela. E então, ele surge, o medo. O medo! Em simultâneo com o deleite, o medo! Acreditar nesse momento que tinha tentado dar o passo maior que a perna. Que não estou à altura desta Serra e desta beleza. Dura! Medo! Respiro com dificuldade e o ar parece não ser devidamente absorvido. Temo. Temo pela Vida. De rosto molhado pela chuva, desespero e chora a alma num grito mudo. Não quero morrer! E nessa hora, no meio da névoa, surgem os espectros ao fundo do caminho, a surgir do arvoredo. Para me levar talvez. Não sei. Tenho medo! Lembro-me da minha filha e choro em silêncio sem uma única lágrima. E nessa hora, como todos os descrentes que só se lembram de Santa Bárbara quando faz trovões, peço a uma entidade qualquer, a alguém que me ouça, que me tire salva dali, que eu prometo, eu prometo nunca mais me meter noutra ..."assim". Há uma casa em ruínas, abandonada no meio da Serra. Imagino a vida de outrora ali. As pessoas, um ou dois cães e crianças. Quase que as ouço gargalhar. E sinto chamarem por mim, e se eu me abrigasse aqui? E se eu ficasse aqui? E se eu morresse aqui? Mas o cenário é devastador! O telhado destruído, a casa em ruínas. E uma chama impele-me para a frente. É continuar. É continuar! E em modo aterrorizado e alienado chego ao Posto Controlo 4: Km 29! Paro o cronómetro que marca 6h21m desde que dei início a esta aventura inesquecível e indescritível. Fico por aqui. Anuncio. Mas está mal, perguntam. Não, não estou mal mas não quero é ficar! Respondo lúcida. E sim, se seguisse, esta história não podia ser assim contada, nem desta forma, nem por esta rapariga.

Dei a prova por ali terminada. Triste, sim. Afinal não foi para isto que eu cá vim! Fiquei literalmente no meio da Serra, como se pode ver aqui, na minha prova. Uma prova inacabada. Uma viagem deixada a meio. Uma porta por abrir que deixei intencionalmente fechada porque assim teve de ser.

E promessa reformulada: em Maio voltarei à Serra de S.Mamede, para apaziaguar as hostes e devolver os fantasmas à Serra e para o ano volto ao Vicentino, para acabar a minha prova!





Organização: Trail Centro Vicentino da Serra  - Nota máxima com, excelentes marcações, apoio no terreno, bons abastecimentos, segurança, prémios presença, tudo 5 estrelas 

A Organização no facebook, aqui