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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Do Covid-19 e do isolamento

Estamos em casa. Podemos estar em casa. Podemos trabalhar a partir de casa. Podemos misturar coisas como picar salsa e inalar o refogado de azeite, cebola e alho, aguçando o apetite, com vozes doces de quem amamos, com medicamentos enfiados boca abaixo de quem resiste mas sabe que é preciso ouvir este ralhete e acatar a ordem como se de enfermeira eu me tratasse, e o sucesso de uma venda de materiais tão frios e duros e gélidos como o aço brilhante e ainda soltar uma gargalhada calorosa com um cliente de topo que conseguimos conquistar muito para além dos cifrões e dos interesses económicos, num telefonema entre casas, com o riso das crianças e o latido dos cães e o chilrear dos pássaros como pano de fundo, numa melodia encantadora. Trabalhar em casa é ouvir a chuva e chorar os que não podem estar em casa. E os que estão em casa e não terão pão na mesa, porque precisamente estão em casa e o vírus roubou-lhes o pão. O pão e as pessoas que não puderam ser choradas condignamente, num enterro a solo. Estamos em casa e olhamos a chuva quando já passada a hora do trabalho, bebericamos um copo de vinho tinto e fazemos amigos sem abraços ou beijos ou palavras sequer. Apenas com pão e amor. E eles são cada vez são mais. Pequenos pardais e melros, que cantam como nunca ouvi e circundam a porta de vidro da minha cozinha que dá para o terraço, mesmo quando chove e eu choro por dentro, e embelezam o mundo com o seu canto e o seu voo e levam as migalhas que lhes ofereço todas as manhãs e noutras horas do dia, até que o Sol se deita. Para as crias, talvez, e garantir a sobrevivência e a continuidade da vida. E nesse instante o mundo fica mais belo. Como há-de voltar a ser um dia. Um mundo onde havemos de poder voltar a voar, sem medo. Um dia. Mas hoje não. Hoje é tempo de ficar em casa.



domingo, 12 de abril de 2020

Do Covid-19 e do isolamento


Domingo de Páscoa

O meu pai chama-se Melro. Tem 83 anos e vive connosco desde Agosto passado. Ele a minha mãe, claro. Uma rasteira da vida, veio mudar o nosso rumo. De dois, passamos a quatro dentro desta casa. Cuido deles com a naturalidade com que sempre cuidaram de mim ao longo de meio século. Agora, é a minha vez. Este é o meu caminho. Mas confesso, depois de todas as necessárias adaptações, de espaço, de tempo, de rotinas, de tarefas, de mudanças dentro e fora de casa, dentro e fora de nós próprios, depois dos incidentes pelo meio que ainda me prometem um novo campo de batalha especialmente montado para mim, onde já sigo por campo minado, ateia rezando para nenhuma mina rebentar, não precisava disto. Desta ameaça invisível. Deste novo desafio dentro de outros. Não precisava. E o Melro, irrequieto como a ave, também não. Ver-se impedido de dar as suas voltinhas diárias, custa-lhe. A ele e a mim. E a todos nós, por certo. Ao contrário de muitos, da sua idade, e da minha e mais novos, tem uma compreensão irrepreensível da situação. E fica em casa! E em casa, ainda podemos tanto!  Hoje, companheiro de “treinos” inventados, como outrora de Corridas. Corridas…que saudades… Mas hoje, por hoje e pelo tempo que for necessário vamos fazer o que temos de fazer: Ficar em casa, é, de acordo com as nossas competências, a singela missão que nos foi atribuída nesta luta silenciosa aqui dentro. Eu, em teletrabalho, guardiã do castelo que sai apenas para o que tem de ser, e eles, “apenas” ficam em casa. E nesta Páscoa, estes coelhinhos ficaram na toca! Para que outras Páscoas diferentes sejam ainda possíveis! E tu? 






terça-feira, 7 de abril de 2020

Do Covid-19

Por aqui, por casa, há quem trabalhe para fora a partir de casa, como se estivesse fora, mas está dentro a fazer mexer lá fora, e a tentar garantir o pão cá dentro,  há quem trabalhe o resto do tempo na própria casa na tentativa de a manter operacional e perfeitamente funcional para os habitantes, há quem estude, há quem resista, quem aprenda, quem cuide, quem segure as paredes do castelo com a força dos braços, reforce a Fortaleza e a abasteça de mantimentos com a regularidade necessária para alimentar os guerreiros, use as armas que tem, com responsabilidade e a necessária seriedade, quem ria quando quer chorar, quem chore sem absolutamente razões nenhumas para chorar, quem fervilhe de emoções e nada transpareça, quem dê graças à Vida e à sorte que com que esta o tem bafejado, há quem brinque, quem leia e quem jogue, quem durma tranquilo e quem não durma, há quem acumule cargos e quem viva indiferente aos noticiários, mas todos, todos sem excepção, lutam no conforto do lar pela sobrevivência. No lado mais fácil desta batalha que o Mundo enfrenta. Em casa. Lutam para sobreviver a esta nova ameaça a juntar às que já não são novas, e lutam para daqui a um tempo sorrirem só porque são sobreviventes! E esta gente aqui por casa, com a sua humildade e respeito pelo conhecido e pelo desconhecido também, continua a acreditar que “Vai ficar tudo bem”, mesmo quando correntes próprias de adolescentes no auge da sua rebeldia os chamam de hipócritas e contrariam a frase, desdenhando-a e desvalorizando-a. A frase. Como se a frase fosse só uma frase…Sem entender a importância e necessidade de manter a aparente inocência e infantilidade de continuar a acreditar e repetir até ao fim dos nossos dias que “Vai ficar tudo bem.” 

E depois, há aqui dentro também, quem apenas olhe a rua, paciente, também à espera de melhores dias, especialmente que o elevador fique de novo a funcionar para poder ir à rua sem isso significar um tormento para as articulações e ainda assim, continuar a acreditar que “Vai ficar tudo bem”. 

Fica em casa, se puderes. Se a tua profissão e missão nesta vida não implicar impreterivelmente que saias…fica em casa. Nós ficamos. É a nossa missão.