Há vários dias que seguia uma dieta rigorosamente vigiada e equilibrada tendo em vista uma perca de peso, que era já de facto excessivo e dava mostras de aumentar até ao infinito, caso ela não fizesse caso.
Naquele dia chegou a casa esfomeada, sedenta, não propriamente com fome, mas com uma vontade louca e incontrolável de se preencher, encher, tapar e esconder, até transbordar e afogar uma angústia inexplicável.
Nada teria feito prever aquilo. O dia correra-lhe bem, dentro dos parâmetros a que se habituara a medi-lo. Quer profissionalmente, quer nas relações com colegas e superiores, quer com a família. Nem tivera nenhuma má notícia, nem fora defrontada com algum novo problema, por insignificante que fosse. No entanto aquela vontade de calar, matar, sufocar e esquecer-se, dominou-a.
Como cega, retirou um bolo da caixa. Engoli-o sem o saborear. Depois outro. Talvez ainda fosse a tempo de parar…mas não, estava perdida e fora de controlo. Aquilo dominava-a. Era preciso matar aquilo. Tapar, esconder. Com comida. Comeu outro e ainda mais outro, até o pacote ficar vazio.
Depois abriu o armário. Percorreu o seu interior como visão raio x em busca de alimentos o mais calóricos possível. Um chocolate esquecido. Engoliu-o. Uma barra de cereais com chocolate, um resto de bolachas recheadas. Tudo foi engolido em segundos.
Enjoada, parou e dirigiu-se à casa de banho. Viu o reflexo do seu rosto branco no espelho. Não planeara aquilo. Tudo acontecera de repente. Tão de repente...
Quando saiu do escritório jamais pensara que os minutos seguintes se desenrolassem daquela forma. Como se ela não fosse interveniente mas apenas espectadora, impotente perante o desenvolvimento dos acontecimentos. Ela não previra aquilo… Estava tudo tão dentro do seu controlo…
E agora isto. Aquilo tinha-a vencido de novo. Olheiras sobre os olhos enegrecem-lhe o rosto envelhecido. Ela não planeara isto… Pegou numa lâmina nova e roçou-lhe o dedo no sentido contrário ao do corte como que apenas a confirmar como estava afiada. Arregaçou a manga da camisola de lã e viu as veias espessas e bem delineadas sob a pele branca. Tocou ao de leve com a lâmina sobre a pele e exerceu uma leve pressão enquanto a fazia deslizar. Um ardor e um vermelho vivo tingiu-lhe a pele. Gota de sangue minúscula. O ardor deu-lhe prazer. Levantou a lâmina e pousou-a mais abaixo, mais perto do pulso sobre outras veias e exercendo agora maior pressão, fê-la deslizar com mais força. O ardor sufocou-a e o sangue já não em gotas, jorrou-lhe em golfadas, sobre o lavatório, as suas roupas e acabando a salpicar o chão. Talvez tivesse cortado a veia certa. Ou talvez a errada.
Olhou uma outra vez ainda o seu rosto no espelho, a admirar a dor, a punir-se e a cultivá-la como um louco e deixou as costas deslizarem pela parede fria de azulejos brancos, descendo lentamente o corpo até ao chão onde se acocorou. Novo corte ardente e mais sangue vivo a escapar-se-lhe do corpo gordo e infame, manchando o chão, de agora maculada brancura suja. Dela.
Fechou os olhos e não acordou.
Quando a encontraram dias depois, rodeada de pacotes de bolacha e de chocolate vazios no chão, de cabeça tombada inerte sobre o peito e o braço e a mão a descansarem numa poça de sangue coagulado, espesso e escuro agora, da sua feliz ignorância, sussurraram de forma fatidicamente irónica:
“Só por teres dado uma facadinha na dieta… não era preciso isto, minha querida…”
De nada lhes valeria dizer, pois jamais compreenderiam, que a dieta e a facadinha não tinham tido rigorosamente nada a ver com o que acabara de acontecer.
FIM
2 comentários:
Esta Ana é "danada"...
Começa um texto normalíssimo e depois..."pimba", lá vai disto!
Grande beijinho, Ana
fa
Que história é esta?
Nossa, tocou e deixou-me assustada!!!!
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