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domingo, 25 de agosto de 2019

Todas as manhãs

Estórias de encantar, mas sem encanto

Da saga “Férias 2019”

Capítulo ...qualquer coisa e mais um...

Todas as manhãs

Agosto de 2019...lá para dia 6, 7, 8, 9 e seguintes...

Todas as manhãs, invariavelmente entre as seis e as sete, com os primeiros raios de luz e o cantar do galo, acordávamos cansadas. Noites mal dormidas, preocupadas, a deambular como fantasmas pela casa, com eles, percorrendo corredores infinitos, mal iluminados por candeeiros velhos decorados com teias de aranha, a produzir sombras fantasmagóricas pelas paredes, para ir à casa de banho, onde claramente nos sentíamos observados e vigiados, mas espantosamente sem medo. De coração aberto, só próprio de quem está ali e na vida, por bem, o medo nunca fez parte da equação. Afinal os invasores éramos nós e os espíritos só guardavam o que a eles pertencia. As aves nocturnas raramente nos davam o desejado e necessário silêncio nas longas noites, emprestando à noite um misticismo quase aterrador, e o nascer do dia era sempre por isso, muitíssimo bem-vindo.

A necessidade de manter uma normalidade rotineira, mesmo quando acabaram de nos tirar o tapete dos pés e caímos desamparados no chão, imperava, e assim, eu e tu meu amor, aos primeiros raios de luz de cada manhã, saíamos da cama. Enfiava umas calças de ganga, uma camisola e uns ténis, prendia o cabelo e afagava-te o pêlo, ainda sentada na sanita, eu, mas já acompanhada de ti meu amor, que me seguias agora pelo corredor infinito, em silêncio, enquanto o resto da casa dormia ainda.

Depois, íamos até à porta da rua, onde eu, ainda cá dentro, de joelho lixado, com dores a fazer adivinhar uma lesão qualquer que se há-de manifestar, me sentava no chão de pernas abertas e te pedia para te deitares entre elas, e então, te protegia a ligadura da tua pata partida e que não se podia molhar na geada da noite na erva do jardim, com uma peúga grossa, um saco de plástico para impermeabilizar e outra peúga para não escorregares. Por fim saíamos. Acompanhadas, sentia-o bem. Sem qualquer necessidade de medo. E o que nos recebia era sempre assombrosamente belo. O Sol no horizonte, a romper, ou apenas a sua luz quando as manhãs eram cinzentas acompanhadas de bancos de nevoeiro junto ao solo. No entanto, as aves recebiam-nos com uma alegria estonteante e contagiante. Estávamos vivos e a Vida é tão rica e valiosa! Andorinhas, pardais, rolas, e ainda uma ou outra ave nocturna que atrasada era surpreendida por nós e depressa se refugiava . Os sons, os cheiros e o cenário que me era oferecido nessas manhãs, presentes de valor inestimável, são inesquecíveis e apesar de tudo o que de menos bom se passava, sentia uma gratidão tremenda, repetida sem cansaço ou enfado, todas as manhãs, talvez pelo simples facto de constatar que estava viva e que o que mais me importa na vida, estava ali, cabia dentro da algibeira e não precisava de mais para estar grata e feliz.

Dávamos o nosso passeio madrugador pelo monte, surpreendíamos as rolas no seu banho matinal, as andorinhas e os pardais numa chilreada que me fascinava de forma pura e genuína e me surpreendia ingenuamente apesar de se repetir todas as manhãs. De forma irrepetivelmente bela! Manhãs de Sol, de nevoeiro ou mesmo de chuva. Espantosa e com tanto para nos ensinar, a Natureza! E eu, do alto dos meus cinquenta anos, ainda com tanto para aprender...

Contavam-me segredos as aves, segredos que o meu coração ouvia e com eles me fortalecia. 

Entre as ervas e a palha molhada, as aranhas fizeram as suas teias durante a noite e algumas maçãs caíram  assim como algumas ameixas e figos.

A nossa volta, normalmente, consistia numa visita às sebes que ladeavam a piscina, onde enfiavas o teu focinho e farejavas sofregamente em busca de algum animal, alimentando a esperança que uma distração dele te permitisse apanhá-lo, o que nunca aconteceu, claro, porque tu, meu amor, és uma pateta como eu, apenas curiosa e ávida de descobertas. Também as enormes oliveiras, abandonadas no meio do terreno mereciam sempre a nossa visita. Triste, uma casa na árvore, meia destruída e partida agora, chorava à nossa passagem, mas no entanto parecia agradecer-nos a visita e prometia ainda dias felizes por aqui. 

Fazias as tuas necessidades e eu alimentava as minhas. Enchia o coração de paz e de harmonia. Apenas contigo e a Natureza. Enquanto todos ainda dormiam a havia verdadeiramente paz,  aqueles momentos ao nascer do dias foram o que me deram alento para o resto das horas dos dias e para todos os outros dias que por lá passámos. E para agora. Tem este condão a Natureza. Com a sua espantosa simplicidade, equipa-nos com o mais forte escudo e torna-nos o mais destemido guerreiro.

Voltávamos para casa, mais leve tu, e mais leve eu, apesar de carregar na bagagem experiências e vivências impossíveis de pôr no papel. Ainda assim, ficam por aqui os registos numa tentativa de eternizar as emoções vividas.

Depois de comermos, ficávamos por ali as duas, a aguardar que os outros acordassem e tu, a aguardar que a relva secasse para poderes por fim, pisá-la à vontade.

 Obrigada Molly e obrigada Mãe Natureza.





2 comentários:

Impressões disse...

Lindo e emocionante! Também eu viajei pelo campo através deste texto maravilhoso. Parabéns Ana. No fim vamos ter um diário ou um romance?

Corre como uma menina disse...

Afastada da escrita mas não das leituras e, de vez em quando, por aqui passo. E é sempre um gosto. Escreves mesmo muito bem, Ana. Sobre corrida e/ou a vida.
Beijinhos