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terça-feira, 3 de junho de 2014

Memórias de uma menina

Não sabe porque as memórias a assaltam assim, invadindo-a sem permissão ou chamamento. Nem sabe porquê estas precisamente.

As janelas estão abertas de par em par. Rectângulos gigantescos de luz a iluminarem o quarto. Está um dia soalheiro, a luz é intensa e o branco é dominante, demasiado até. Brancas são as paredes e os lençóis que cobrem os corpos magros. Branca é a pele de avô deitado sobre a cama. Branca é a bolacha de água e sal, as únicas que o avô pode comer e que ela segura na sua pequena mão e mordisca devagar.

"Conta ao avô, vá!", incentiva-a a mãe, mas ela, de pé encostada à cama, não diz nada, tímida e assustada sem compreender bem a situação nem entender porquê o avô está ali.  "Ela hoje fez o almoço!" Disse a mãe orgulhosa e perante a fingida surpresa do avô, a menina acena com a cabeça afirmativamente num misto de orgulho, timidez e tristeza.

Recorda o cheiro. O cheiro das bolachas "Cracker", irrepetível na vida dela, misturado com o cheiro a hospital, a desinfectante e a doença ao mesmo tempo. O cheiro. Esse cheiro consegue senti-lo hoje tão intenso e tão vivo como o era nessa época. Claro, inequívoco e inigualável.

Outra vez, quando chegaram para a visita, não a deixaram entrar. A mãe afastou-a empurrando-a para trás com firmeza com uma mão sobre o peito dela. O osso estava à vista, disseram-lhe mais tarde, e nesse dia ela não viu o avô.

Outra vez ainda, a mãe teve de ajudar o avô a fazer xixi, assim, ali mesmo no quarto, e recorda as duas figuras de costas: o avô grande e branco (branco também pelas roupas vestidas), calvo, apoiado com o braço sobre os ombros da sua filha, figura pequena mas grande em força que o ajudou a manter-se sentado na cama e a aliviar-se, acertando no recipiente para o efeito.

Outro dia ainda, à hora da visita a cama do avô estava vazia. Feita de lavado, lençóis impecavelmente alvos, esticados sobre a cama, sem um vinco ou uma ruga sequer.

Depois, no dia seguinte por certo, seguiu-se a visita à casa mortuária, ali mesmo, naquela que pertencia ao hospital, revestida de azulejos coloridos e muito preenchidos, do tecto ao chão. Pequena, apertada, com decoração beata e um pequeno altar. Muitas pessoas de idade e ela. No meio, o corpo do avô em caixão aberto. Não houve receio. Apenas um mistério a pairar sobre a criança. Pouca dor, ou mesmo tristeza. Um sentir estranho este.

No dia seguinte, já no cemitério, a cena foi observada e digerida de longe. O lenço que tapava o rosto do avô, agora desviado para o mostrar e para que todos se pudessem despedir dele, teimosamente voltava a cobrir o rosto do avô com a brisa que se fazia sentir e que de quando em quando era mais forte e levava o pano a cobrir de novo o rosto do avô, para ser também de novo retirado pelo senhor da funerária, deixando o rosto descoberto. Isto repetiu-se algumas vezes e é a última imagem que a pequena tem do avô.

Depois, há todos os passeios que deram no meio do campo. O sabor dos passeios à Fonte dos Porcos e à Fonte do Freixo, agora inexistentes. Caminhos de terra entre vegetação. E mais uma vez o cheiro. O doce cheiro desses passeios com o avô...O cheiro das ervas, das flores, do mato. A mão forte do avô e os passos de gigante que ela tinha dificuldade em acompanhar.

As vezes que juntos caminharam, de mão dada com ela, pois era a mais nova dos netos...

Recorda-se daquela vez que foram só os dois e levaram duas pêras para o lanche. Comida a dela, a pequena ainda com fome pergunta ao avô "Tu tens fome avô?" ao que ele responde que não, não tinha, para logo ver ripostada pela menina de 4 anos apenas "Então podes dar-me a tua pêra!", episódio esse contado depois repetidas vezes, com muito orgulho pelo avô, a toda a família e amigos. Como era esperta a pequena! Dizia ele.

Por tudo isso, por tudo isso, este monte de pedras tem um significado muito especial para a rapariga. Este edifício em degradação, conta muitas histórias, muitas histórias, e uma delas, é a dos últimos dias desta menina com o seu avô. O avô Quico...






4 comentários:

Jorge Branco disse...

Cá está a tal escrita quente, envolvente e sensual pela qual me apaixonei desde a primeira hora que” tropecei” na “Maria”.

Mete dó ver tanto abandono, tanto desperdício, este país mete dó.
Um dia vendem aquilo numa negociata qualquer e fazem ali um condomínio de luxo. Enfim é o costume...

Beijinho Ana

JoaoLima disse...

Bonito texto (como sempre).
As memórias marcantes da infância, dominam-nos sempre.

Beijinhos

Anónimo disse...

Querida amiga
um prazer sempre ler as tuas palavras, obrigado pela partilha.
Beijinhos Ana.
António

Horticasa disse...

Pois é, as recordações são lixadas, sobretudo estas... O meus avós também foram muito meus amigos e também contavam as histórias que vivíamos...engraçado como me recordei de mim, obrigada.
Um texto muito lindo, bem escrito e senssivél como sempre, beijinho grande