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quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O maltês


Tirou as chaves da algibeira e em resposta ao chocalhar das mesmas, não teve o latido do cachorro de outrora, do outro lado da porta, ansioso por o ver chegar. Não teve os risinhos das crianças que correriam para si com vozinhas estridentes de alegria. Não teve o beijo da mulher de seus lábios cansados mas sorridentes e macios, nem o afago no rosto com que ela quase sempre acompanhava o beijo.

A chave rodou na fechadura, a porta rendeu-se abrindo-se e ele mergulhou no silêncio em que a casa habitava. Dirigiu-se à cozinha, abriu a lata do pão e verificou o saco: um naco esquecido já a criar bolor, cujo odor ele inalou profundamente, levando-o mais perto das narinas, até sentir uma repulsa, certificando-se do que os olhos viam e confirmou através do olfacto que o alimento não estava em condições de ser consumido. Noutro saco, uma carcaça de ontem, sim, tinha comprado ontem duas carcaças e lembra-se agora que só tinha comido uma. Estava boa portanto, esta segunda.

Abriu o frigorífico e constatou que as prateleiras sujas apenas suportavam um resto de margarina embrulhada em prata, um pacote de leite aberto e umas garrafas de cerveja. Abeirou-se então da porta da despensa e retirou uma lata de sardinhas. Conservas é o que há mais ultimamente nesta casa. Desde que está sozinho, parece que descobriu o quão prático e saboroso é abrir uma carcaça do dia anterior, despejar lá para dentro o conteúdo de um enlatado, sardinhas ou atum, deixar escorrer o óleo que o pão ensopa sofregamente, fechá-la e devorá-la fazendo-a acompanhar de uns goles de cerveja bem gelada.

São refeições rápidas estas do maltês. Rápidas demais. Talvez por isso, por vezes repete a cerveja, e fica ainda a bebericar uma terceira ou mesmo quarta garrafa mesmo depois de acabar o conduto, de olhos presos numa televisão que passa imagens que ele não vê.

Às vezes treina, depois de um dia de trabalho e antes de chegar a casa. Mesmo sem ter ninguém à sua espera, treina, e só agora que não tem ninguém à sua espera quando treina, é que sente a falta de ter alguém que o aguarda e que reclama porque ele foi treinar e não está mais presente. Agora pode, que não tem ninguém a reclamar a sua presença, pode treinar sem tempo nem pressa. Mas terrivelmente, sente a falta deles, à sua espera. Agora tem a casa vazia à sua espera. Mas mesmo sentindo a falta deles, ele treina.

É esta a vida do maltês.

5 comentários:

Outwit the devil rushed! disse...

obrigado...

Unknown disse...

Puxa, que texto bacana!!!

Abração!

Kim disse...

Mais um belo apontamento que nos faz reflectir em como devemos aproveitar as coisas boas enquanto as temos e a pouca importância que lhes damos porque as tomamos como garantidas...

Fernando Andrade. disse...

Esta é a Ana, na plenitude dos seus dons. Lindo.
Grande beijinho.
FA

Mité disse...

Ana que bom, como fiquei feliz com este texto, é realmente bom "ler-te" assim, e não de outras formas que me deixam triste...
Parabéns está lindo, senti cada palavra...
Bjos amiga,continua!