Foi onde o meu avô morreu. Há cerca de 30 anos atrás. Lembro-me. De entrar no átrio e as narinas serem invadidas pelo intenso cheiro que identificava como sendo éter. O cheiro a Hospital, a desinfectantes e a medicamentos, misturado com o cheiro a doença, que inalava quando caminhava pelo corredor e entrava por fim no quarto.
Levavamos-lhe bolachas de água e sal, as únicas que ele podia comer e que eu provava junto com ele, e corava quando a minha mãe anunciava orgulhosamente que eu já sabia cozinhar. Época em que ela se orgulhava de mim e em que eu corava, incerta do meu saber. Menina pequena que eu era.
Lembro-me dos jardins, onde esperávamos a hora de visita ou que visitávamos depois. Bonitos. Verdes. Empedrados. Lembro-me. Lembro-me também da casa mortuária onde o visitei quando os seus olhos já não se abriam e as mulheres e homens velhos me beijavam chorosos sem eu os conhecer. Não compreendia aquele sentimento geral. Juro que não o compreendia. Apenas sabia que a minha mãe tinha perdido o pai.
Lembro-me da capela de azulejos onde foi dada missa e das palavras vazias e decoradas proferias de cor. Lembro-me da revolta, sempre a revolta contra um representante da hipocrisia perante a morte. Compreendia a morte. Ou julgava que a compreendia. O último adeus sentido e vivido num lenço branco que lhe tapa o rosto, se levanta com uma leve brisa e que é recolocado de novo por mãos rugosas, sobre o rosto do meu avó, que jamais me beijará num hálito fétido de velhice e de doença.
Foi aqui neste Hospital. Há trinta anos atrás. Hoje, a Corrida levou-me lá. Hoje, depois de fechado e muito vandalizado, ergue-se a adivinhar as ruínas que há-de ser. Dói-me o peito ao ali passar. Revejo o que lá vivi, de novo. A entrada no quarto, o mandarem-me sair porque estavam a fazer o penso a uma ferida que nunca sarou, e a recordação da imagem da minha mãe a ampará-lo para ele aliviar a bexiga, ali mesmo no quarto, para um bacio alto, que deve ter nome próprio mas que eu nunca soube.
É assim a Corrida. Leva-nos a lugares incertos sem darmos conta, nem percebermos porquê. É assim a Corrida. Levou-me ali hoje, 2ª feira, 09 de Agosto de 2010, dia em que corri 6 Km em 38m03s média de 6:20 / Km. Que importância tem isso? Tanta ou nenhuma como a morte do meu avô há 30 anos atrás num edifício que está hoje a cair de podre, literalmente a cair de pobre, e que é sem dúvida alguma parte do nosso Património, da nossa história, do nosso ser, da nossa vida.
E hoje é assim: Apenas uma história recordada, de uma quinta construída no século XVII, inicialmente casa de recreio e agrícola dos Duques de Loulé, salientando-se a capela forrada a azulejos com cenas da vida de Santo António. Possuía uma zona de lazer com lagos e jardins, parte dela destruída já e ocupada por uma urbanização que lhe roubou muito mais que o nome: Quinta da Flamenga. Funcionou como Sanatório e Hospital, até ser fechado e abandonado às vontades dos vândalos.
No passado teve ainda um aqueduto que vindo da Serra, onde tantas vezes treino, trazia água para um tanque, embelezado por um marco Fontanário, situado defronte do Palácio
Hoje é isto: ruínas e história. A morrer, a fugir da gente e até das memórias.
Garanto que voltarei lá, para buscar mais memórias, minhas e de outros mais antigos que eu sou só uma menininha. Porque história é também Vida. Aprendemos com ela. Até a perceber quem somos.
Depois, no resto da semana, não consegui sair para correr. E amanhã é já outro fim-de-semana. Bom Fim-de-semana para todos. Com ou sem Corridas
6 comentários:
Deixou este gaucho aqui do sul do Brasil, ARREPIADO . Que historia bonita, mesmo com o motivo triste desta lembrança.
Não sou muito ligado nestas lembranças da morte que ja vivi. Me emociono sempre em corridas por outros lugares onde convivi com as pessoas sorrindo ao meu lado.
Corre agora la pela pracinha onde o vovo te levou um dia e recorda outra vez, vai valer a pena, tenho certeza.
É isto ai corridas e emoções, todas e a gente vive muitas coisas boas.
Ontem fiz a receita, ficou uma delicia.
Abraços
Eduardo
Pelotas, RS
Brasil
A vida é um mar de memória, um círculo fechado em que acabamos por voltar sempre aos mesmos sítios
Conto contigo nos Trilhos de Monsanto!
Espero que gostes do Quilometro Gastronómico pese embora não tenha os paladares do Arroz de Tamboril.
Em princípio vou mesmo à míni de São João das Lampas que o Fernando merece!
Tudo de bom para ti.
Oi Ana
Comentei com amiga minha ai de Lisboa se conhecia o Hospital, abaixo o que ela me escreveru.
-Não identificava porque se chama Hospital da Flamenga e não Hospital do Flamingo.
Trata-se de um caso bastante falado e muito infeliz de não conservação do nosso património.
Localiza-se numa zona periférica de Lisboa que em tempos foi uma grande quinta pertencente ao Duque de Loulé.
Inicialmente foi um hospital de doenças pulmonares devido aos bons ares da zona.
Depois uma extensão do Hospital de Vila Franca de Xira.
Após a Revolução dos Cravos (25 de Abril de 1974) é devolvido ao povo e funcionou até 1998.
São feitas grandes obras (70 000 contos) e então a Direcção Geral de Saúde "descobre" que não tem condições de funcionamento e passa a pertencer à Direcção Geral do Património. A sua conservação não foi provavelmente considerada prioritária porque ficou ao abandono e tem sido alvo de verdadeiro saque. Levaram portas janelas e o mais que puderam.
Recentemente a Junta de Freguesia entaipou a capela para tentar protegê-la.
É uma situação que cria mau estar na população que não se conforma. Outras questões fomentam a discussão do caso.
Em traços gerais o caso, que pessoalmeente muito lamento, é este.
maria
Olá maria!
Não me deste uma resposta,que pena, mas não faz mal.
Já cá estou em Lisboa ainda sem treinar.
O teu hospital pode muito bem enquadrar-se http://lugaresesquecidos.co.cc/forum/index.php aqui, claro que as tuas recordações são tuas e a forma linda como ao escrever as transmites a todos nós é magnifica.
Um grande beijo nosso
eugenia
É assim a vida... hoje vivência, amanhã recordação, é dificl observar "bocados" da nossa história que se degradam e desaparecem, mas são assim as histórias de todos nós,
perdemos pessoas, perdemos lugares, restam as recordações e mesmo dolorosas elas sabem bem e também é bom podermos passá-las a outros, filhos amigos etc.. eu gostei muito de ler ! - Bjos
Olá amigos
Ao Eduardo, obrigada por tudo, já coloquei comentário no "post" seguinte - do bacalhau - sobre a receita. E fico também sensibilizada que aquele monte de pedras e cal, ainda de pé - o velho Hospital - chegue assim ao Brasil, e de cá vão palavras para lá e de lá para cá. Gostei. É isto mesmo: onde a corrida nos leva... Um beijinho para si
Olá Jorge
Monsanto? Hum... veremos...
Lampas? Sem dúvida
beijinho
Eugénia... minha amiga, o tempo voa como sabes, por isso não respondi...e agora já cá estás em Lisboa, mas haverá mais oportunidades, assim "a gente" queira.
Minha amiga TD, tu que me ensinaste a viver assim, tu precisamente... a viver cada momento, a recordar o ontem sem esquecer o Hoje... fico contente que tenhas lido e gostado. É que isto não é só corrida como bem sabes ;) Beijinho
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