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segunda-feira, 28 de julho de 2008

"Cast me aside" - por Lara Fairie

Despojou-se do que já não tinha e pousou os braços sobre o volante imóvel do carro em andamento. Segue viagem o carro. E ela dentro dele deixa-se ir. Quem a visse diria que conduzia e que almejava um destino paradisíaco talvez ou apenas um modesto porto de abrigo, mas é mentira. Só se deixa ir na auto-estrada negra sob um sol escaldante e luminoso. Até onde o carro a levar.

Sentiu os braços cansados sobre o volante. Insuportavelmente cansados e pesados. Ampara-lhe agora os pulsos nele pousados, o volante. Veloz o carro e parada ela. Veio-lhe à memória uma frase batida. “Hoje é o último dia do resto da tua vida”. Mais memórias. De coisas. Coisas passadas. De pessoas. Pessoas presentes ainda que longe. De críticas, censuras, invejas, hostilidades e falsidades. De hoje. E sorrisos cínicos ou apenas vazios, indiferentes. De hoje. E do passado aquele sorriso de bebé veio-lhe de novo à memória para a fazer sorrir enquanto chora. Sorriso de bebé com apenas dois dentinhos acabados de romper deixando já marcas na medalha de ouro que pende suspensa do fio que o padrinho deu.

Segue veloz o carro. Cansada, ela, semi-serra os olhos e por fim, sem força, deixa cair os braços, pendendo-os sobre o colo.

Quando acordou no hospital, assustou-se. Aquilo era a sério agora. Mas ela não queria. Ela estava só a brincar, a pedir ajuda, a chamar a atenção que nunca teve. “Não, não me levem! Eu preciso viver!” . Soltaram-na, com a certeza porém de que ela voltará e que virá o dia em que será tarde demais.

Se há forma que lhe daria prazer morrer, era num trágico acidente de viação, o mais aparatoso possível, sem no entanto envolver terceiros que esses coitados não pediram para se cruzar com ela na estrada nem na vida.

Só uma única coisa a prende a esta vida terrena, uma única coisa, um tesouro de que teme não saber cuidar.

Não, não lhe falem das latas de sardinha e das festas feitas com elas numa mesa pobre mas rica de sentimentos, de alegria e de sorrisos. E quando já não há latas de sardinhas? Já sentiram o sabor do bolor no pão? E ainda assim o degustarem como se de caviar se tratasse? Até à última migalha?

3 comentários:

Anónimo disse...

Ana, não se esqueça de sonhar...


José que também corre

MPaiva disse...

Amarmo-nos é lutar constantemente contra milhares de forças ocultas que brotam de nós mesmos ou do mundo.

Por: Jean Anouih (Dramaturgo Francês)

disse...

Olá Ana, obrigada pela visita na minha ausência e pelas palavras carinhosas. Volte sempre que quiser, ok? Volto oportunamente para conhecer melhor seu blog. Bjs e ótima semana. Zá.