Pesquisar neste blogue

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Aquele olhar

Esta noite estiveste inquieta. Muito inquieta. Não sossegavas de forma alguma. Saías da tua caminha e vinhas deitar-te no chão, aos pés da minha cama. Lambes feridas que teimam em reaparecer agora depois da 2ª sessão de quimioterapia e os tecidos inflamados regressam, invadindo os espaços sãos do teu corpo. Tens a respiração ofegante, levantas-te e pedes para ir ao terraço, onde, ao invés de um qualquer e habitual alívio da bexiga, acabas por simplesmente ficar estagnada de pé, a olhar o céu negro sob a doce chuva morna que de mansinho nos caía em cima e incrivelmente nos sabe tão bem. Uma vez mais, contigo aprendo a saborear o momento, por mais singelo e vulgar que pareça, e encontrar nele o significado da vida. Da minha vida, pelo menos. Vens para dentro, bebes água, afago-te o pêlo com uma toalha, limpando-te, e vais para a tua caminha onde não ficas mais que escassos minutos, para te ires deitar de novo no chão, aos pés da minha cama, onde também não descansas e depressa te levantas para mudar de lugar e posição.

Passo a noite em sobressalto. Como sobressaltada tenho vivido desde há um bom tempo para cá. Parece que tenho sempre o coração nas mãos e a qualquer momento se pode partir irremediável e definitivamente.

Mesmo antes de termos tido a confirmação, já sabíamos que o prognóstico não seria bom, conforme se veio a confirmar: Linfoma T, que te ataca tudo o que é mucosa. O resultado veio precisamente na véspera de Natal, dia 24 de Dezembro de 2020, mas a Doutora não nos quis dar a notícia antes do Natal, como se ainda fosse possível passarmos o Natal felizes e descansados. Mas não, não era possível, porque nós, sem saber, já sabíamos.

Hoje acordaste triste. Mas não precisei de te chamar para irmos à rua. Vieste ter comigo à cozinha e saímos bem cedo para a rua. Noite ainda. E que custoso foi este passeio hoje, meu amor. Caminhas muito devagarinho, meio trôpega, quase a tropeçar nas tuas próprias patas. E depois…aquele olhar! Aquele olhar, querida Molly, que eu não quero aceitar e finjo não compreender. Insisto e incentivo-te a caminhar e tu lá vens, muito devagarinho. Fazes as tuas necessidades e por fim chegámos a casa, de uma voltinha que pareceu interminável hoje. E aquele olhar Molly, aquele olhar…Que me trespassa o coração e me deixa sem palavras. Apenas te acaricio e minto-te descaramente dizendo que vais ficar boa, meu amor.  Mas tu e eu sabemos que é mentira. Mas também sabemos que tem de ser assim meu amor. Até ao fim. Acreditar mesmo, que este dia vai ser bom e que temos este momento  para partilhar e viver! E isso, meu amor, isso, é mesmo verdade e é a esta verdade que nos agarramos  e é esta verdade que nos faz acreditar e lutar, dar o melhor de nós em cada dia para fazer deste dia, um dia melhor. E assim será. E amanhã um outro dia. Melhor talvez…







Sem comentários: