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sexta-feira, 20 de março de 2020

A noiva

Estórias de encantar, mas sem encanto

Da saga “Férias 2019”

Capítulo fora de ordem, racional ou outra

A Noiva

Algumas vezes, ao fim do dia, já noite dentro, depois de jantar e da loiça metida na máquina, reuníamo-nos à volta da mesa. Dessa mesma mesa de madeira onde tomávamos as refeições.

A fraca iluminação e as teias de aranha pelos cantos do tecto davam à habitação um toque fantasmagórico, misterioso e caprichoso, ao melhor sabor do fantástico e de filmes de terror.

Os jogos de tabuleiro, descobertos na casa, de entre uma pilha empoeirada de brinquedos e livros velhos, com décadas de uso, mil e uma histórias vividas, ocupavam o centro da mesa e depois de analisados era escolhido um. O papel amarelado, envelhecido pelo tempo e pelo uso, e o cartão amachucado, com vincos de memórias antigas, rugas desenhadas pela vida, incorrigíveis, eram características comuns a todos eles, mil e uma vez manuseados, testemunhas silenciosas de serões passados por ali. Também de noites dolorosas e de dias sombrios. De sangue derramado e de almas trespassadas por lanças de ferro enferrujado e frio. Mas eles não sabiam disso nem poderiam saber.

Naquela noite foi escolhido o Loto e a jovialidade dos jogadores deu vida ao jogo e o jogo deu vida aos jogadores.

Escolhidos os cartões, sobrou um, porque tu, Mãe, jogavas agora outro jogo. Precisamente à mesma hora, a centenas de quilómetros dali, jogavas com a morte e a vida e sorrias num corredor de hospital entre dezenas de outros que como tu, aguardavam uma decisão, uma sala disponível, uma operação, um parecer médico, uma evolução de estado, ou simplesmente a morte se os familiares ali os abandonaram. Porque há muitas formas de morrer, e ali, há já gente morta.

O cartão do Loto que assim sobrara, foi colocado no centro da mesa e prontamente decidido pela nossa menina mais nova, que dormia no quarto da noiva, e que com ela partilhava não só o espaço que era o seu quarto, não o tempo, mas também o nome: Carolina.

Deram início ao jogo e foram saindo os números. A sorte e o azar a brincar connosco. As risadas dos ganhadores, que tinham a sorte por eles e os rostos contrariados, quase amuados, meio a brincar meio a sério de quando os jogadores se viam a perder. A noiva, invisível, mas claramente presente ia ganhando pontos, à medida que os números iam saindo, preenchendo o seu cartão de forma anormal e assustadoramente rápida. E quando só lhe faltava sair um número, uma única peça, deu finalmente a vez aos outros, enganadores e enganados, rijos e sorridentes como petizes apesar da idade avançada de alguns deles.

Ganhou o avô. Foi o primeiro a preencher o cartão. Riu-se como um miúdo. Serão feliz à volta de uma mesa de madeira e de um gasto jogo de Loto. A noiva, só não ganhou porque, verificou-se depois, que a única peça que lhe faltava, era uma peça que simplesmente não estava na caixa. Teria desaparecido no passado e na história da casa e das pessoas que por ali passaram. Distribuídas todas as peças, faltava a única necessária para a noiva preencher o seu cartão: a peça número 77.

Risadas joviais, arrumado o jogo e siga o serão. Sigo para a cozinha. É preciso acabar de lavar as chávenas do café que bebericámos a acompanhar o jogo e bolinhos.

Remeto-me à cozinha e começo a lavar as chávenas. A água a correr, os salpicos e o emaranhado de fios, tomadas duplas e tripas e extensões eléctricas diversas ali tão perto… Num momento em que rodo a torneira, parece-me sentir um ligeiro formigueiro no braço direito. “Ui…não…isto deve ser impressão…isto não pode dar choque!” De seguida vou buscar as restantes chávenas à sala e quando pouso as mãos na pia do lava-loiça, agora cheio de água, entupido pela canalização e escoamento deficiente e nítida e claramente agora, apanho o maior choque eléctrico da minha vida. Grito e afasto-me do lava-loiça. Não é possível, isto não é possível…mas eu senti! Juro que senti!
- Mãe! Gristaste?!
- Sim! Apanhei um choque, saiam daqui, ninguém toque na bancada, afastem-se!
Afastaram-se, tão ou mais assustados que eu.

Pego na esfregona e começo a limpar os pingos de água no chão. A esfregona, farfalhuda, numa dança no chão, em círculos enérgicos que lhe imponho, involuntariamente levanta a cortina que tapa a bilha do gás debaixo do lava-loiças e para meu espanto traz com ela um pequeno objecto que arrasta no chão, preso às suas franjas. É azul e pequeno. E perante a surpresa de todos, é uma peça do loto! Mais especificamente, a peça com o número 77…




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