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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Até já Abelha Maia



Querida Abelhinha

Faz mais de uma semana que nos deixaste. Faz mais de uma semana que te visito diariamente. Não. Minto. Visito-te mais de uma vez por dia. Para ver se estás "bem". Como se estar morto pudesse de alguma forma significar "estar bem". 

Aguentaste a noite e de manhã, voltei a aconchegar-te, pela última vez, sei-o agora,  no meu colo e ajustei a mantinha ao teu corpo encostado ao meu. Soube sem saber, que não durarias muito mais, acariciei-te e dei-te um beijo na cabecinha, autorizando-te a partir, meu amor. "Podes ir, querida, podes ir...", disse-te. Saí para comprar pão e quando voltei cinco minutos depois, já cá não estavas. A Morte tinha entrado em casa e tinha-te levado minha querida. Encontrei o teu corpo quando voltei, quente, sem vida, flácido e inerte. Toquei-te e percebi que já tinhas partido. Peguei-te e por instantes quis o meu coração ver-te viva, a ilusão de um ténue movimento do tórax, a dizer-me mentindo que estarias ainda a respirar, mas não, era ilusão e os teus olhos abertos agora sem vida e a cabeça pendida, diziam-me o contrário. 

Querida Abelhinha, nunca pensei que perder um ser assim, como tu, tão pequeno e "insignificante" pudesse tocar-me tanto. A Morte, cobarde, entrou em casa quando eu não estava e levou-te. O ser mais frágil. Aquele que tratei como um bebé, que alimentei a seringa, que lutei para resistir noutra ocasião. E conseguimos nessa altura, meu amor! A alimentação especial, a medicação e sem dúvida o amor agarraram-te à vida no passado. Mas agora, assim de repente, nada disso foi possível ou suficiente.

No espaço de 24 horas, disseste-me que estava a chegar a tua hora e partiste. 

Não consegui fechar-te os olhinhos. Deixei-te embrulhada num lençol branco dentro de uma caixa de cartão. Agora não havia tempo para tratar de ti, e tinha de ter a certeza de estares morta, minha querida, antes de decidir o que fazer ao teu corpo. À noite, com a alma do avesso, desembrulhei-te e olhaste-me sem vida, com a tua carinha fofa, serena, sem dúvida em paz e sem sofrimento agora. Não consegui fechar-te os olhinhos, minha querida. Fechei o lençol e vi-me rua acima de pá às costas  e um cadáver debaixo do braço.

A terra está dura apesar da chuva dos últimos dias. Há raízes e pedras. A pá parte-se. Acabo a escavar com as próprias mãos. Não há medo. Bem...só um pouco de repulsa quando toco numa minhoca. Instinto primitivo. E dor. Resignação. Aceitação. Reflexão. A Morte. Tu e eu. A tua carne igual à minha, a decompor-se a tua nos próximos dias. A luz que se apaga. A Vida. O último sopro. Que fazemos cá nós? Cuidamos uns dos outros, respondo sem hesitar. Por instantes, mais do que os desejáveis ou aceitáveis, desejo ficar ali contigo, à beira do riacho, sob a protecção das árvores, a ouvir a água correr, debaixo de um palmo de terra, que eu não consegui escavar mais fundo, a apodrecer em paz, até a Mãe Natureza me transformar em flores e ervinhas e quem sabe em borboleta ou até talvez em pássaro. Ou talvez ainda em ratazana ou morcego. Em vida de novo. Só isso importa. Vida de novo. E a minha e a tua, e a de todas as formas de vida, qual vale mais? Não sou mais que tu minha querida Escherichia (o teu nome oficial, mas para mim serás sempre a minha Abelha Maia, a minha Abelhinha). Deixaste-nos minha querida, e eu continuo cá por enquanto, nesta forma de gente.

Deixaste-nos..E a mana? O olhar da mana, que apesar das normais picardias entre irmãs, nas tuas últimas horas, esteve sempre contigo, colada a ti, sem se mexer? Só de manhã se afastou, farejando a Morte por perto, como eu, e o seu olhar, meu Deus, esse olhar de medo, sem compreender o que se passava, apavorada. Ou compreenderia e queria dizer-me mais, mais ainda do que eu via? Oh Dottie, minha pequenina, desculpa não conseguir tranquilizar-te, explicar-te o que eu própria não compreendo, confortar-te... O teu olhar nessa manhã em que a Abelhinha nos deixou, marcar-me-á para sempre. Sentiste a Morte, minha querida, mesmo antes dela levar a tua mana, e disseste-me muito mais do que eu poderia entender ou entendendo, explicar por palavras.

Sem palavras, calei. Calei a dor. Calei os pensamentos, calei as palavras. Anormalidade este consciente absurdo de emoções, esta necessidade mórbida de te visitar a toda a hora. De certificar-me que nenhum animal (de quatro ou duas patas) poderia profanar a tua última morada e o teu pequeno corpo. A necessidade de certificar-me de que estás "bem". A culpa de não te ter conseguido salvar. A culpa de não ter conseguido escavar mais fundo e deixar o teu corpo em segurança. A culpa...sem fundamento racional. A culpa de sentir mais do que o expectável e o socialmente aceitável. A culpa de querer estar contigo mas ainda não poder. A solidão. A paz que anseio ao lado do riacho que corre, onde os pássaros chilreiam e as árvores sussurram segredos imperceptíveis entre si...Onde uma parte de mim ficou...Abelhinha, até já minha pequenina. 


2 comentários:

Horticasa disse...

Mais um magnifico texto.
Tinha saudades de te ler, não quis fazê-lo no fb, acho que aqui é melhor mais leitura, não sei!
Beijinho eugénia

Anónimo disse...

Custou-me muito ler o texto...toca muito o coração de quem é mais sensível. Mas tu és assim, a tua escrita é assim e só acho que, com tantos escritores que por aí andam muito maus, ninguém tenha ainda "pegado" em ti e te "obrigado" a escreverer um livro. Quanto ao assunto...sobre corridas, sobre a vida, romances, etc. não seria problema para ti.

Um bj de quem te admira muito

Fernando Sousa