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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Trail Centro Vicentino da Serra - Portalegre - 10 de Janeiro de 2016

"O meu Trail Vicentino" ou "Como foi horripilantemente fantástico"

"Os fantasmas que trouxe da Serra de S.Mamede habitam em mim ainda hoje e suspeito mesmo que tenha de lá voltar, para os devolver onde pertencem"

Primeiro foi o desafio lançado por um amigo. O entusiasmo de braço dado com o medo. As dúvidas, a coragem, e as inscrições a decorrerem em bom ritmo e em vias de esgotarem, e quando dei por mim estava inscrita. Não sem ponderação, note-se. Seria o meu maior desafio em termos desportivos. Em Trail seria a maior distância alguma vez percorrida (42 km) assim como em subida acumulada (1687m). No entanto, acreditei que seria possível. Treinei alguma coisa e continuei a acreditar. O espírito seria correr quando pudesse, caminhar quando o desnível e a técnica necessária (de que eu sou uma completa aprendiz) assim o exigisse e  apenas uma nuvenzinha negra me fazia temer poucas coisas mas que poderiam ser as suficientes para me fazer não chegar ao fim: uma queda séria com danos físicos graves, perder-me de forma irrecuperável para a prova e a reacção do corpo ao frio que sabíamos que iria fazer, acompanhado de chuva e vento aliado à longa duração da prova. Um terreno desconhecido portanto, tornando legítimos não digo os medos mas as preocupações.

O grupo Runners da Frente Ribeirinha da Póvoa, sempre presentes, apoio incondicional ao longo dos meses, nos treinos e agora também no dia da prova. Não estava só.















Mas nestas e outras coisas, podemos ter todo o apoio do mundo mas o fundamental somos nós e está em nós. Assim, parti confiante mas também apreensiva confesso.


Ainda sigo uns metros com a Paula Cristina e a Laida, e tento não as perder, mas elas têm outra pedalada.


Tenho de as deixar ir e isto é mesmo assim: cada um tem de fazer a sua prova e eu só aspirava acabar a prova e acabar dentro do tempo limite (8h30m). Acreditava que era possível mas sabia que não podia "descuidar-me" muito, sabendo também que se apertasse muito, pagaria mais tarde. Por isso fui mantendo o meu ritmo confortável, não me preocupando (muito) de ter menos que meia dúzia de atletas atrás de mim. 

A Serra é belíssima. Deslumbra-me em cada passada, em cada trilho, em cada recanto, em cada paisagem, em cada pedra e em cada raíz ultrapassada, em cada riacho atravessado. A chuva foi sendo uma constante. A lama, também. Os riachos quase diria que também. Ia eufórica com tudo aquilo. Trilhos desafiantes (para mim), cordas para nos ajudar a passar os riachos onde a água borbulhava, e em zonas mais inclinadas, e a chuva, sempre a chuva por companhia. Ia deslumbrada com a Serra. Tanto que dou por mim no km 12 e surpreender-me por já ter percorrido tantos kms. Vou bem. A Organização 5 estrelas. Excelentes marcações, tanto que fiz 85% da minha prova sozinha e nunca tive dúvidas por onde seria o caminho a seguir. Corro quando o terreno o permite, caminho nas subidas, sigo com mil cuidados nas descidas assim como nas travessias dos riachos onde fui cair direitinha que nem um fuso, aproveitando o rápido borbulhante das águas e por instantes temi ir parar ao Oceano face à violência das águas, em conjunto com a corrente e as lajes inclinadas. Um braço agarra-me e uns olhos claros perguntam-me se estou bem. E sim, estou. É levantar e seguir e até rir com o cómico da cena. Continuo bem, a usufruir de todo aquele verde, de toda aquela água, quer a da chuva quer a dos riachos. Vou feliz e bem.

Chego sensivelmente a meio da prova (21 km) e vou com 4h14m. É o primeiro alerta. A continuar assim, e dificilmente conseguiria continuar assim pois para além do cansaço se ir acumulando, os últimos 12 km já tinham sido anunciados como terríveis, iria chegar à meta mesmo em cima da hora limite: 8h30m de prova! Assalta-me por essa altura a nítida certeza que não chegaria à meta a tempo. Atitude derrotista ou vamos tentar? Vamos tentar! Chego ao Posto de Abastecimento 3, no km 22. Chove quase torrencialmente. Admiro os membros da organização, debaixo de toldos oscilantes com a chuva e o vento e a simpatia fabulosa. Bons abastecimentos, como fruta, e até bebo um café quente junto com biscoitos. Soube mesmo bem. Um companheiro de prova fica por ali, diz estar com cãimbras. Eu sigo. Agora sozinha e penso alcançar o próximo Posto de Controlo, ao km 29.

Vou bem. Muito bem. Sou eu e a Serra. O vento uiva. As árvores sussurram e dançam no alto. Por vezes protegem-me, por vezes temo que uma se parta e me caia em cima. As luvas ficaram encharcadas e as mãos gelam ainda mais com elas calçadas. O vento e a chuva fustigam-me em zonas desabrigadas. Os lábios gelam. Os pés enterram-se na lama até ao tornozelo. Nem vale a pena escolher o caminho. É seguir em frente. Encontro membros da organização. Falta muito para o próximo posto? 3 ou 4 km, dizem-me mas podem chamar alguém para me vir buscar. Não! Sigo! Gosto desta solidão. Não vejo ninguém atrás nem à frente. Sou eu e a Serra. E o vento. E a chuva. E a terra. E a água a cantar furiosa nos ribeiros. Os trilhos são ribeiros por onde a água corre em sentido contrário ao meu. Vou enganada eu ou é a água que vai? Tento abstrair a mente mas o gelo apodera-se do meu corpo e mal me consigo sentir. Preciso aliviar a bexiga e a custo baixo os calções. Quando os levanto, e vejo que a parte da frente está no lugar, não sei como está atrás. Molhada, fria, não sinto as pernas, o rabo, as mãos...não me sinto simplesmente. A custo lá me certifico que estou vestida e sigo como posso. Mais vento frio a cortar-me as faces. Encontro de novo membros da organização o que se repetiu mais à frente, mais uma vez oferecem ajuda mas eu prefiro seguir. Até ao próximo Abastecimento. Subo ao ponto mais alto da Serra e sinto uma plenitude indescritível. Sempre sozinha. Há uma névoa a envolver a serra, a envolver-me a mim. O ar cada vez mais frio entra-me pelas narinas, percorre as vias respiratórias e roça o coração que estremece. Não estou com frio, não sinto frio, apenas estou fria, gelada ao ponto de quase perder a sensibilidade. Resta a mente e um corpo em automático. Respiro fazendo uma concha com as mãos para dessa forma aquecer as mãos e também tentar que o ar inspirado não seja tão frio. Avanço com dificuldade. No entanto a Serra nunca perdeu o encanto. Nem por um segundo. Bem pelo contrário. Mostra-se como ela é. Ríspida, implacável, magnífica e bela. E então, ele surge, o medo. O medo! Em simultâneo com o deleite, o medo! Acreditar nesse momento que tinha tentado dar o passo maior que a perna. Que não estou à altura desta Serra e desta beleza. Dura! Medo! Respiro com dificuldade e o ar parece não ser devidamente absorvido. Temo. Temo pela Vida. De rosto molhado pela chuva, desespero e chora a alma num grito mudo. Não quero morrer! E nessa hora, no meio da névoa, surgem os espectros ao fundo do caminho, a surgir do arvoredo. Para me levar talvez. Não sei. Tenho medo! Lembro-me da minha filha e choro em silêncio sem uma única lágrima. E nessa hora, como todos os descrentes que só se lembram de Santa Bárbara quando faz trovões, peço a uma entidade qualquer, a alguém que me ouça, que me tire salva dali, que eu prometo, eu prometo nunca mais me meter noutra ..."assim". Há uma casa em ruínas, abandonada no meio da Serra. Imagino a vida de outrora ali. As pessoas, um ou dois cães e crianças. Quase que as ouço gargalhar. E sinto chamarem por mim, e se eu me abrigasse aqui? E se eu ficasse aqui? E se eu morresse aqui? Mas o cenário é devastador! O telhado destruído, a casa em ruínas. E uma chama impele-me para a frente. É continuar. É continuar! E em modo aterrorizado e alienado chego ao Posto Controlo 4: Km 29! Paro o cronómetro que marca 6h21m desde que dei início a esta aventura inesquecível e indescritível. Fico por aqui. Anuncio. Mas está mal, perguntam. Não, não estou mal mas não quero é ficar! Respondo lúcida. E sim, se seguisse, esta história não podia ser assim contada, nem desta forma, nem por esta rapariga.

Dei a prova por ali terminada. Triste, sim. Afinal não foi para isto que eu cá vim! Fiquei literalmente no meio da Serra, como se pode ver aqui, na minha prova. Uma prova inacabada. Uma viagem deixada a meio. Uma porta por abrir que deixei intencionalmente fechada porque assim teve de ser.

E promessa reformulada: em Maio voltarei à Serra de S.Mamede, para apaziaguar as hostes e devolver os fantasmas à Serra e para o ano volto ao Vicentino, para acabar a minha prova!





Organização: Trail Centro Vicentino da Serra  - Nota máxima com, excelentes marcações, apoio no terreno, bons abastecimentos, segurança, prémios presença, tudo 5 estrelas 

A Organização no facebook, aqui

14 comentários:

Álvaro Costa disse...

Parabéns, pela coragem e pelo texto maravilhoso! És uma inspiração para todos quantos correm,bjs Ana

Horticasa disse...

Que mal!! Nem quero pensar em fazer uma prova assim, assim as coisas perdem o encanto...mas tu não!!
Tu vais lá voltar, sim, para o ano que vem vai estar sol, já assegurei as coisas com o S. Pedro e aí sim, vais tirar a desforra, beijinhos nossos

Pedro Ferro disse...

Tenho a certeza que para o ano a Serra também vai esperar por si, com o mesmo encanto e a mesma aspereza, para lhe lançar desafio igual. Mas a Maria irá surpreendê-la com outra preparação e em vez de medo, apenas respeito, em vez de ansiedade um sorriso desafiante. Boa sorte para o ano!

JoaoLima disse...

"para o ano volto ao Vicentino, para acabar a minha prova!" É este o espírito!

Foi tudo uma questão de condições terríveis. Eu próprio, na marginal Cascais-Lisboa, tive o treino mais duro que alguma fiz, pelas condições climatéricas. Sentia que estava numa máquina de lavar a centrifugar. E era ali e sem frio... Nem imagino o que terá sido na montanha, onde tudo se amplifica e onde o frio veio juntar-se à festa.

Muitos parabéns pelo teu esforço e coragem! Sim, porque tiveste a coragem de chegar ali e a coragem de desistir.
E a coisa não fica assim. A montanha que espere pela tua resposta :)

Beijinhos

Anónimo disse...

Olá, Ana,

Mais uma brilhante crónica em que descreves tudo e muito bem sobre esses paradoxos e contraditórios 29 km...

Nada está perdido... estamos sempre aprender, e na próxima correrá melhor!

Beijinhos!

Orlando Duarte

Anónimo disse...

Ana!

Palavras para quê? É a Ana Pereira concerteza, sempre com a sua escrita inconfundível. Para o ano vai haver desforra já vi.

Bjs.
Fernando Sousa

Carlos Pinto-Coelho disse...

Valente Ana. Aqui entra a nossa cabecinha a funcionar e não pára mais. É um diálogo/monólogo contínuo a infernizar a nossa corrida. Com o tempo vais-te habituando a estas paisagens agrestes e belas ao mesmo tempo. É a minha opinião pessoal: por isto prefiro o trail. Sempre uma incógnita o que pode acontecer. Na estrada é tudo mais previsível. A nossa capacidade de superação mas, superação consciente daquela linha que divide... eheh. De certeza que no dia seguinte já tinhas marcada a "vingança". Uma coisa é certa: ajuda muito ter o conhecimento do que vamos encontrar pela frente para assim gerir o nosso tempo. Parabéns, e temo que seja a primeira de muitas. Bjinhos

Unknown disse...

Parabéns!
Que maravilhosa descrição e que coragem!
Uma verdadeira odisseia!
Imagino e desejo que no vosso próximo encontro tudo irá correr bem melhor!
Obrigada pela partilha!
Beijinho

Isa disse...

Ana, completaste 30 km duma prova durissima. Estás de parabéns!
As condições meteorológicas foram de facto bastante duras e acredita que isto só serve para nos tornar mais fortes. Correr com aquele tempo é de loucos! E em plena serra!
Ainda bem que mesmo assim gostaste tanto da prova porque o TCVS é de facto espectacular e merece tudo o que de bom se tem escrito sobre ele.
Para o ano há mais ;)
Beijinhos

Corre como uma menina disse...

Olá Ana. Descreveste muito bem as emoções que nos assolam quando corremos só nós e a Serra. Linda, fantástica e terrível. Somos tão pequenos...
Parabéns pela tua prova!
Beijinhos

Fernando Andrade. disse...

Com tais palavras, a Ana consegue mostrar-nos o filme da Prova! "Horripilantemente" belo este texto. Li-o pausadamente, para melhor o absorver e não custou nada ver-me envolvido naqueles cenários próprios daqueles filmes intensos, cheios de mistério.
Também já me aconteceu ter de interromper a prova por duas vezes: a Freita, aos 40Km dos 60 que tinha e os 100 de Madrid, aos 33Km. Fica alguma frustração, que depressa se transforma em desafio para a próxima edição. Mas a verdade é que, não conseguindo preparação adequada, nem numa nem noutra voltei a marcar presença. Mas gostava.
"Quanto aos fantasmas", tão próprios das cenas aqui tão bem descritas, eles acabarão por desaparecer logo que vier a confiança, fruto de uma preparação adequada a tão exigente desafio. De qualquer forma, ter lá estado, Ana, é de grande coragem. Muitos parabéns. Beijinhos.

anci disse...

A minha querida amiga trailista, és muito mais teimosa do que eu - eu já tivesse desistido no quilómetro 5 naquelas condições, ou nem partisse de casa...

Se pode discutir as preferências entre correr de estrada ou trilhos, mas com certeza trilhos (mesmo e especialmente nas condições extremas) dão muito mais bonitos fotos e textos :-)

anci disse...

A minha querida amiga trailista, és muito mais teimosa do que eu - eu já tivesse desistido no quilómetro 5 naquelas condições, ou nem partisse de casa...

Se pode discutir as preferências entre correr de estrada ou trilhos, mas com certeza trilhos (mesmo e especialmente nas condições extremas) dão muito mais bonitos fotos e textos :-)

José Presado disse...

ups.....vai receber em breve um convite para voltar ao local e conquistar o que ficou pelo caminho em Janeiro de 2016, ainda há tempo para preparar o desafio...vamos a ele....esteja atenta ao email......