
A recente separação, num grito de coragem há muito abafado, de um casamento de mais de doze anos, mantido pela fachada e por interesses, quer sociais quer de outra índole, a dura realidade de uma hipotética e utópica independência, agora constatada com um emprego precário e uma filha pequena a seu cargo que ainda chora pelo pai, agora tão ausente como antes, podem ser causas tão ou mais plausíveis como as anteriores.
As contas por pagar, a comida para pôr na mesa, as guerras dentro e fora do tribunal, pelo poder paternal onde se esquece o paternal e busca apenas o poder, o maior poder de aniquilar e magoar o outro, esquecendo por completo o mais importante, as noites mal dormidas revendo problemas e projectando soluções na maior parte dos casos impraticáveis, também em conversas inúteis até quase de madrugada, com um amante casado, enchendo-a simultaneamente de esperança e de dor, e a dúvida acerca da sua própria capacidade de levar esta jornada escolhida para a frente: criar a filha sozinha, levaram-na a um estado de desgaste tal que se poderá facilmente compreender o descuido, se é que o houve.
Acordou a meio da noite, desorientada, no sofá da sala, com a filha aos gritos, um intenso cheiro a queimado e uma luz alaranjada crepitante e oscilante desenhando sombras gigantescas e assustadoras na parede do corredor, vinda da cozinha, e labaredas altas que consumiam já a cozinha inteira.
Foram chamados os bombeiros, a polícia e não há quaisquer danos físicos e visíveis em nenhuma das duas ou sequer da vizinhança que acudiu solidariamente não sem disfarçar uma censura muda transmitida em olhares acutilantes que a ferem como lâminas e espadas espetadas fundo no seu peito. Não tanto como umas outras que lhe trespassam não o corpo mas sim a alma e que se chamam culpa. Questiona tudo agora. A sua sanidade, a sua capacidade de tomar conta de si própria e da filha, o seu direito de egoisticamente ter acabado com um casamento que a fazia infeliz, quando sujeita a filha a privações e até a perigos graves como se está a ver.
Neste momento não se apercebe da mulher forte que é. Nem consegue conceber que o que aconteceu foi um acidente. Que a filha está bem, assim como sempre esteve nos seus dez anos de vida, e que isso se deve essencialmente a ela, sua mãe, que tantas vezes prescindiu da sua própria vida em prol da filha, e que agora, pensar nela própria e que lhe parece egoísmo, não é mais que pensar também na filha. Ela tem direito à felicidade. E lutar por ela… ninguém disse que ia ser fácil. Isso ela já sabe hoje, mas tem ainda muito mais a aprender. A levantar a cabeça e avançar.
Quem me dera poder ajudá-la… E talvez possa sim….
5 comentários:
Ainda não existem padrões e modos de vida perfeitos e dificilmente existirão algum dia.
Algumas experiências de vida são traumatizantes e só a tenacidade e a vontade de viver para o bem da filhota têm-lhe permitido enfrentar com toda a dignidade esta forçada travessia do deserto.
Com coragem e também dedicação as barreiras serão derrubadas e ultrapasadas.
Um beijinho.
Ana
Obrigada pelos votos de melhoras do Miguel. Está tudo controlado. Amigalite.
Mais um dia e fina fino como a seda:))
Beijinhos
(Não treinei "rien de rien", como seria de esperar. Isto promete:))
Bonito Anuskinha
Momento de inspiração profundo !!!
Beijocas
TD
Um momento de inspiração sim, e ainda por cima no feminino! Belo texto, onde o que parece ser iverosímil é afinal uma realidade partilhada por muitas mulheres no auge da "guerra das rosas" com filhos pelo meio( e neste caso não o é por pura coincidência).
A sensibilidade subtil das tuas palavras sem ( com) querer atinge-nos em cheio!
Força rapariga!
Eu como sabes ( porque gosto de ser do "contra") estou do lado daqueles que se disfarçam de "batman" para reivindicar direitos contra a chamada "ditadura do útero" ( que não garante o direito subliminar aos afectos, como muita gente quer fazer crer quando adjudica as expressões, "instinto maternal" ,"ter nascido dentro mim" entre outras, para reivindicar a maternocracia). Amar e educar está muito além da palavra Mãe. Aliás palavra que só tem propriedade quando consegue provir ambas as coisas.
Bjs
Ana !
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