Partiste há mais de um mês e eu ainda não acredito. Não acredito, simplesmente. Ainda ontem estavas aqui e agora não estás. É só isso que vejo, é só isso que sinto. É só isso que conta. É só isso que existe: a tua inexistência. Onde estás Molita? Onde estás… meu amor? Faltas-me. Penosa e dolorosamente faltas-me! Pedaço de mim em falta. Pedaço de mim ausente. Pedaço de mim inexistente, pedaço de mim nem sequer vazio, antes inexistente. Inexistente é a palavra mais próxima ao que sinto, pedaço de mim perdido, irremediavelmente perdido, arrancado sem dó, sem sentido, pedaço de alma roubado, ceifado em pouco mais de três meses e ainda assim num ápice. Tudo tão rápido, tão dolorosamente rápido e talvez por isso a tornar-se inacreditável e inaceitável. Ainda não acredito, não aceito, não concebo esta vida sem ti e eu sei que terei de aceitar e continuar a viver, e eu assim faço, mas não escondo mais, não posso esconder mais esta dor de perder parte de mim. A vida continua, dizem, e é verdade, continua sim, mas não para ti, não para mim contigo ao lado. Continua para mim, sim é verdade, mas sigo amputada que é como me sinto. Faltas-me.
Dizem romanticamente que te transformaste numa estrelinha e estás lá no
céu dos cães a olhar por nós, livre de dor, liberta por fim, a correr feliz num
campo verdejante salpicado de malmequeres sob um Sol radioso e um céu azul brilhante e a
imagem é tão bonita que até nos dá vontade a todos de morrer depressa para
vivermos nesse paraíso idílico. Dizem…para que seja mais fácil a aceitação e
possamos nós seguir em frente com as nossas vidas felizes. Dizem… Eu…só sei que
tu me faltas, como membro amputado, ferida aberta em chagas e ainda assim eu
continuarei a viver, eu sei, e tenho mil e dois motivos para sorrir e ser feliz.
Ajudei-te a transpor a porta da morte, abri-a para ti meu
amor, e partiste. E eu fiquei do lado de fora, ainda do lado de cá, como dita a
lei natural da vida. E não, não vieste em sonhos dizer-me nada como me fizeram
acreditar. Que virias dizer-me que estás bem e que eu podia continuar feliz a
seguir a minha vida feliz. De consciência tranquila por ter feito tudo o que
estava ao meu alcance. Mas os dias e as noites passam e tu não voltas. Tu não
voltarás nunca mais e tudo isto parece-me ainda que não aconteceu. Foi tudo
demasiado rápido e agora resta apenas a tua falta. E a certeza de poder ter
feito muito mais Molly. Muito mais ao longo destes quase doze anos.
Sonho número um
Cerca de três semanas depois de partires, por fim, sonho
contigo. Tenho tantas saudades tuas meu amor. Eu sei que os sonhos vêm do nosso
subconsciente e só nos revelam a nossa própria alma. Os nossos medos, os
desejos, o que nos preocupa e inquieta, o que mais desejamos ou mais tememos. E
normalmente essas revelações vem sempre em linguagem simbólica. Sempre gostei
de sonhar e sonho imenso. Imenso. Como até os meus amigos mais chegados bem
sabem. E eu queria, queria muito sonhar contigo e sonhar que eras tu que me
visitavas e talvez esse sonho me apaziguasse e confortasse. Estava a demorar e
por fim “apareces-me” em sonho. No entanto, sem apaziguamento e sem qualquer
espécie de conforto possível.
Uma imagem, um flash, uns segundos. A doença. A luta. Vindas
da rua, onde teimosamente continuávamos a ir para fazer de conta que a vida seguia
o seu curso normal, sobes os três degraus das escadas da entrada no prédio, com
dificuldade como já o fazias ultimamente, vens toda torcida, trôpega e
cabisbaixa e tens fezes agarradas ao rabinho. Dor. Doença. Decadência.Impotência. Medo.
Força. Esperança. Medo. Força. Força. Muita força. Impotência. Impotência! Abraçamos
a luta desde a primeira hora e nunca houve tempo nem espaço nem forças para
desperdiçar com lágrimas, lamúrias ou tristeza. Nesse segundo sonhado, cabem os
três meses de luta desde que te foi diagnosticada a doença.
Sonho número dois, 9 de Maio
Faz precisamente um mês que partiste. Um mês. E surges-me de
novo em sonho. Desta vez, estou na rua, convivo alegremente com um grupo de jovens,
e estou bem apesar de ter consciência no próprio sonho que partiste e que já cá
não estás. Estou de férias e é Verão. Levo os jovens para a casa de férias, e animada mostro-lhes
a casa, e quando saio para o amplo jardim, surpreendentemente vejo-te! Sob o
sol brilhante, deitada na relva, à sombra de uma oliveira, está tu deitada, com
o ar mais feliz do mundo, na posição de esfinge do Egipto, elegante, sorridente,
de olhos brilhantes e língua pendurada devido ao calor e por teres por certo
andado a brincar. Estás um pouco mais magra mas o teu ar “limpo”, livre de
mazelas, feridas ou chagas, quer na pele quer nas mucosas, deixa-me tão radiante quanto surpreendida.
Mas…mas, tu estás viva?! Mas afinal tu ainda cá estás meu amor!! Perante o meu
espanto e alegria, o meu pai apressa-se a explicar “Desenterrei-a, e ela ainda
está viva e está bem!” (na verdade, nem sequer foste enterrada meu amor, o teu
corpo físico, a matéria sem vida foi entregue a correr no crematório municipal,
com o teu corpo, monte de carne e ossos e músculos, ainda quente…) Mas, mas…e
nem está suja de terra nem nada?! O meu pai apressa-se a dizer que só te sacudiu
as orelhinhas e a ponta do nariz, e que estás óptima! Afago-te as orelhas,
macias como seda e delicio-me com o brilho do teu olhar, esses olhos castanhos profundos, essas pestanhas lourinhas, e o ar saudável e feliz que tens! Oh meu deus, eu ainda tenho a minha Molly
comigo e ela está bem…oh meu deus…tenho de ligar à Maria para lhe dizer, tenho
de lhe ligar e dizer-lhe!
Acordo. A realidade mantém-se. Continuas a faltar-me.
Sonho número três
Imediatamente na noite seguinte, 10 de Maio, volto a sonhar
contigo. Queria guardar o sonho de ontem, convencer-me que estás bem, guardar
aquela imagem para sempre, que estás feliz, que ajudar-te a atravessar a porta
que todos nós atravessaremos um dia, foi o melhor que podia ter feito (e foi),
que estás agora livre de dor e estás bem, mas não, hoje apareces-me em sonho,
num local onde nunca estiveste. Estás triste, deitada no chão num passeio
imundo bem conhecido no centro da cidade. Encosto a minha cabeça à tua e lágrimas
grossas soltam-se dos teus doces olhos e correm como rios até ao chão, como se
fosses humana, lágrimas que eu precisava de soltar, soltá-las tu. Somos só nós
no mundo, todo o burburinho da cidade à nossa volta se cala e tudo o resto parece
desaparecer apesar de estarmos numa zona muito movimentada da cidade e há uma
tristeza imensurável a rodear-nos, a cercar-nos, a tolher-nos como manto negro
caído pesarosamente sobre nós.
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