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terça-feira, 13 de abril de 2021

Molly 26-05-2009 - 09-04.2021

Até sempre querida Molly

Há um prato com frango cozido sobre a mesa da cozinha. Foi o teu jantar ontem e hoje seria a tua refeição da manhã, comida que adoras, com massa e um fio de azeite, mas hoje de manhã tu já não comeste, pela primeira vez recusaste comida, e eu hoje, olho as pernas do frango, ainda por desossar e choro, choro compulsivamente porque tu já cá não estás para as comer. E agora o que é que faço ao frango, interrogo o Universo como se a questão fosse mesmo essa e não estivesse apenas a disfarçar uma outra pergunta bem mais dolorosa e de resposta imutável.

Nós encomendámos a morte. É o que parece à primeira vista. Mas nós apenas combinámos o dia, a hora, o local e abrimos-lhe a porta, ajudando a nossa amiga parceira na vida, de quase 12 anos, a transpô-la. Afinal ela, a morte, já andava por aqui a rondar há imenso tempo e nós a fintá-la enquanto pudemos. Foi assim na passada 6ª feira dia 9 de Abril de 2021. A Molly deixou-nos. Partiu. Enquanto lhe acariciava o corpo e lhe embalava a alma com doces palavras. Tantas. Tantas, tantas palavras. Enquanto o líquido azul bonito a prometer o céu, lhe entrava nas veias e se espalhava pelo corpo, imobilizando todos os músculos até ela deixar de respirar e partir por fim. De certeza que só ouviu um terço ou menos do que a minha voz calma lhe dizia baixinho com amor. Tanto amor Molly. Tu sabes. A Molly deixou-nos. 15h09m, 9 de Abril de 2021, e nunca mais o chão da minha cozinha será só o chão da minha cozinha.

Fujo. Fujo. Fujo daqui. Desta casa onde vivemos, deste pedaço de chão, frio e agora insuportavelmente vazio e limpo, antes sempre ocupado por ti meu amor, deitada a meus pés, onde quer que eu estivesse, a “estorvar-nos” o caminho e a obrigar-nos a dar passos de gigante só para não te pisar ou incomodar. Fujo à velocidade que o Intercidades consegue deslocar-se no espaço e desejo e confundo que o espaço seja o tempo. E dolorosamente, é tão vagaroso, tão mais vagaroso do que eu queria fugir daqui, deste hoje, deste presente, deste dia, desta hora. Ironicamente o meu lugar no comboio é um lugar “de costas” em que nos dá a percepção de viajar “para trás”, simulação perfeita pois é para aí que eu no fundo quero ir. É para aí que eu queria fugir. Em busca de ti meu amor, do teu corpo quente, do teu coração a bater, do teu peito a subir e descer enquanto dormias confirmando a respiração e descansando os meus temores nos últimos tempos, dos teus olhos brilhantes, do teu sorriso radiante e pobre de quem não saiba que os cães sorriem sim. Quero voltar lá atrás, para um dia qualquer destes últimos onze anos e encontrar-te feliz e saudável ao nosso lado, onde sempre estiveste. Queria voltar a passear contigo no jardim, dar uma volta nas hortinhas com o Byron, cheirar o Jonas e brincar com a Kira, lembrar o Rot e o Billy e até a Fiona e o Simba, cumprimentar o Cooper e o Fox e tolerar o jovem Sall com a sua energia estonteante e jovial e cumprimentar o Thor de fugida. Queria voltar a ver-te passear na praia com o Alex. Queria voltar a ralhar-te por andares sempre de nariz no chão à procura de restos de comida na rua e devorares tudo o que era porcaria como se passasses fome em casa. Queria atirar-te bolinhas no jardim, que depois tinha de ser eu a ir apanhá-las (nunca foste desses cães ágeis, atléticos e espertos que trazem a bolinha de volta para o dono a voltar a lançar. Normalmente corrias para a ir apanhar, mas depois largavas, entretendo-te de imediato com qualquer outra atracção perto do local onde a bola caía, fosse um pau, uma cana ou simplesmente o acto de arrancar erva com os dentes com um interesse fantástico e único. Queria voltar aos dias em que nos trazias da rua, uma bola velha ou um brinquedo esquecido ou perdido no meio da erva, e eu cansada, já desistira de te contrariar. Temos vários cá em casa, que depois de lavados, faziam e fazem parte dos teus brinquedos. Queria voltar aos dias de praia, aos dias que nadavas comigo no mar, em que paciente aguardavas que o Pipas partilhasse a merenda contigo, aos dias na piscina, onde não entravas mas do lado de fora jogavas à bola connosco lá dentro. Queria voltar aos dias em que acompanhavas a menina a correr no Parque de Santa Iria. Aos dias em que te sujavas de lama. Aos dias em que te plantavas à beira da mesa quando a avozinha tomava o pequeno-almoço ou a qualquer outra das refeições da família onde pertences e pertencerás para sempre, na esperança de alguém te dar um pouco de pãozinho ou de broa de milho que adoravas. Até aos dias por uma razão ou outra menos felizes, mas em que a tua presença me apaziguava e confortava de forma absolutamente única e genuína.

Mas não, a vida não anda para trás e assim como este comboio não anda para trás e jamais volta a passar num local e tempo onde já passou, nenhum desses dias volta, nem eu nem tu podemos voltar a eles.

Agora, hoje, neste exacto momento chamado presente, tu já cá não estás e está apenas um prato com frango cozido sobre a mesa da cozinha, e eu ao olhá-lo, choro, choro em silêncio porque assim tem de ser, mas com uma dor e desespero sem consolo possível, que nunca pensei que um prato de frango cozido sobre uma mesa branca de cozinha pudesse desencadear.

Não sei como voltará a ser a vida para todos nós, nesta casa, sem ti. Saberemos em breve.

Dormimos juntas a última noite. Lado a lado no chão. Ouvi-te sem falhar um minuto, a tua respiração, cada inspiração e cada expiração, o bater do coração, os movimentos peristálticos, tão pouco “poéticos”, mas é deles que é feito o cancro, de merda e de sangue, e de postas de carne viva a saírem de ti, de feridas e pus, de fluidos de odor nauseabundo, de podridão e decadência, de lágrimas de sangue, de olhos baços cansados. E se depois da decisão tomada na véspera ainda me surgiram algumas dúvidas ao fim do dia, hoje, depois de te acompanhar de perto, tão perto que mais perto só seria possível dentro de ti e acho que foi mesmo aí onde eu estive, dentro de ti, toda a longa e dolorosa noite, aos primeiros raios de Sol, todas as dúvidas se dissiparam. O teu bem-estar, o teu conforto, a tua alegria por viver, por estar cá, connosco, foram sempre, mas sempre a minha única prioridade e objectivo desde o início desta batalha. Mas a noite, com inúmeras interrupções em que tive de te ajudar a levantar para ires ao terraço fazer necessidades, os teus olhos sem vivacidade, a tua boca inflamada, tudo o que era mucosa quase em carne viva e a tua recusa em comer pela 1ª vez desde que travámos juntas esta batalha, deram-me todas as certezas de que estávamos a fazer o que tinha de ser feito. Já não estaríamos a prolongar-te a vida, mas sim a prolongar o teu sofrimento e isso eu não ia permitir. Não mais. Por isso, quando o dia clareou, só implorava que a Drª não demorasse muito mais para acabar com o teu sofrimento o quanto antes.

De 2ª a 6ª feira o cancro galopou desenfreado, qual besta desencabrestada, com uma velocidade que não acreditava ser possível, e nesta que seria a semana da tua 5ª sessão de quimioterapia, a batalha estava perdida. Se de início, em Janeiro, começamos o tratamento com quase toda a esperança do mundo, ao longo das semanas fomos percebendo que apesar de todos os nossos esforços e do teu corpo se manter relativamente forte e estável para continuar a lutar e aguentar o choque do tratamento, ele, o cancro, foi-nos sempre ganhando aos pontos, primeiro em silêncio e por fim da forma gritante e alarmante que descrevi. Sempre um passo à nossa frente e nós a corrermos atrás, reparando os danos, acreditando sempre que o dia seguinte seria melhor, e às vezes era. Até ele nos vencer por fim. Caímos derrotadas. E agora descansas, livre de todo o sofrimento.

Questiono-me de algumas coisas. E respondo-me. Se terá valido a pena toda esta luta? Claro que sim, se havia uma hipótese de sucesso, uma única hipótese em mil…tínhamos de tentar e lutar por ela. E nós lutámos! Juntas! Se deveria ter-te “libertado” mais cedo? Não, enquanto te senti “cá”, connosco, a lutar ao nosso lado, lutei contigo e nunca desisti de ti, por muito “fácil” e “confortável” que poderia ter sido para mim, acabar contigo e alegar para conforto do meu ego que “foi o melhor para ti” quando na verdade saberia que a verdade é que o teria feito por ser o melhor para mim, e eu, pus-te sempre em primeiro lugar e continuaria a fazer tudo de novo e mais que fosse, por ti, se soubéssemos que ainda havia esperança e que o saldo na balança era positivo. Se, se, se…Revejo minuciosamente todos os passos que demos lado a lado e faria tudo de novo, com a mesma esperança, com a mesma fé, com a mesma alegria que partilhavas comigo, que me ensinasse a sentir, por cada segundo de vida em que éramos felizes, só por estarmos aqui! Perante as adversidades, as partidas que a vida na prega, os desafios que nos lança e as provas que nos exige sem passar diploma no final, temos de erguer a cabeça, lutar, ter fé, esperança, munirmo-nos de todos os aliados possíveis e fazer o que tiver de ser feito com um único objectivo em mente: o teu bem-estar, a tua alegria de viver, o teu conforto, ignorando a dor que isso nos causa a nós próprios. Porque tu meu anjo, mereceste tudo de mim, e tudo de mim eu te dei. Até ao último dia.

Foram tempos duros, muito duros, a ver o cancro ganhar terreno, a ver-te degradar aos poucos desde Janeiro, ainda que com algumas conquistas a alimentar-nos a esperança para de seguida serem de novo resgatadas pelo cancro, e de forma assustadoramente rápida e sem dar tréguas ou ilusões, nesta última semana.

Foi uma prova muito dura meu amor e tu passaste com excelência até ao limite do possível. Lutaste com alegria e viveste com alegria, dando-nos lições de vida, ensinamentos básicos que esquecemos, tão simples como aproveitar a vida, dar o melhor de nós, lutar e acreditar sempre e ser feliz com o que temos e com o que a vida nos oferece e fazer os outros felizes e buscar neles o seu melhor também. E tu foste mestre e eu aprendiz. Só espero não te desiludir, ter estado e continuar a estar, à tua altura. E continuar a viver mais rica, porque me ofereceste quase 12 anos da tua vida, a fazer-me feliz meu amor. E perdoa-me por alguma que deveria ter feito de forma diferente e não o fiz porque não soube.

Foste o cãozinho mais doce e corajoso que conheci. E eu…fui só a tua mamã, aquela que ama, que cuida e privilegia acima de tudo e dela própria, o teu bem-estar. Sempre por ti, muitas horas, literalmente ao teu lado, até ao teu último suspiro.

Até já meu amor. Estás para sempre no meu coração.

 

Molly, 26-05-2009 – 09-04-2021

Roubada da minha vida pelo Linfoma Cutâneo, tipo T

 

Ps: Um agradecimento muito especial, directo do coração, ao Dr. José Martins (Hospital Veterinário de Berna) pela sua permanente disponibilidade, apoio, acompanhamento e orientação clínica e admirável humanidade; à Drª Sónia Ribeiro (VetLonga), por todos estes anos a acompanhar a Molly e …por tudo, à Drª Joana e à Drª Georgiana (Vip Pets), à Drª Sara; à Daniele e à Inês (VetLonga) e a todos que de uma forma ou outra estiveram connosco nesta luta desigual.

Aos amigos que fizemos, muitos sem nos conhecerem pessoalmente e ainda assim torceram por nós, a nossa maior gratidão

Até sempre Molly, meu anjinho  























8 comentários:

Carlos Cardoso disse...

Ana, nem sei o que dizer e acho que não há mesmo nada que se possa dizer nestes momentos que ajudem de alguma forma a ultrapassar a dor que sentes. Só posso desejar muita força neste momento dificil.Um beijinho

Maria Sem Frio Nem Casa disse...

Muito Obrigada Carlos, não, não há mesmo nada que se possa dizer que me alivie, mas as palavras abraçam-me. Já não é pouco. Obrigada, do coração.
E eu vou ficar bem.
Beijinhos

ZIA disse...

Nem há palavras.... Só lágrimas.
Mas com a certeza de que a nossa Loirinha foi abençoada pela família que teve.
Beijo nesses corações

ZIA disse...

Nem há palavras.... Só lágrimas.
Mas com a certeza de que a nossa Loirinha foi abençoada pela família que teve.
Beijo nesses corações

Isa disse...

Lindo texto.
Um grande beijinho Ana. Muita força!

Chá de Canela disse...

Minha querida, deixo-te um abraço muito apertado e carregado de lágrimas - que bonito este vosso amor!
A Molly está agora a rebolar e a brincar no paraíso dos cãezinhos e de olho em ti e por ti, estou certa!

JoaoLima disse...

Um grande beijinho, Ana

Maria disse...

você mesmo que está lendo essa massagem. Deus Está preparando uma grande benção Para sua vida. Deus tudo pode fazer amém.......