Faz um mês que partiste. Poucos sentiram. E poucos sentem a tua falta agora, nós incluídos, deixemo-nos de romantismos bacocos e hipócritas. A falta de convivência nos últimos tempos, por vicissitudes da vida não se coaduna com falsas saudades e doces palavras agora. Excepção feita às colaboradoras do Lar onde te encontravas, pois têm menos um idoso para tratar, mas o lugar depressa é ocupado por outro e entre mudas de fraldas, banhos e paciência de Jó e também sabedoria para lidar com demência, teimosias e a dor do esquecimento também, depressa o lugar que ocupavas será substituído por outro velho. Na cama do quarto e no coração das empregadas. Só isso. Assim.
Partiste no dia 11 de Fevereiro de 2023, dia que a tua mãe, a Ana Caixeira, a minha Avó Ana, faria anos se cá estivivesse. Não estava. Estava no céu, certamente a aguardar-te de braços abertos, reunindo os filhos num abraço só, como te disse na véspera de partires. E diz-me lá agora, foi assim ou não foi?
Encontravas-te no hospital desde 26 de Janeiro, para morrer, como nos disse de forma dissimulada o médico que nos convidou a fazer a despedida. Porque estavas a morrer. Como se todos nós não estivéssemos a morrer desde o dia da concepção! Assim, "despedimo-nos" a 30 de Janeiro, dia em que nos ligaram, mas foi uma falsa partida, até porque nos pediram para não te tocar e foi por demais doloroso. Não é assim que as depedidas devem ser! Depois, porque tu nunca mais morrias, senti que tinha de lá voltar para a derradeira e verdadeira despedida e te mandar seguir.
Aliás, aquela visita ao hospital na véspera de partires (10 de Fevereiro), foi muito mais que uma despedida. Encontrei-te sem falar, mas a comunicação vai muito além das palavras emitidas e escutadas. A visita foi principalmente uma combinação que fiz contigo. Devias partir Tia. Estava na hora. Falei como uma parvinha, disse-te tudo o que me ocorreu enquanto te segurava a mão e acariciava o rosto e te dava beijinhos. E sem falares, senti claramente que me respondias a cada patetice que te dizia. Emitias sons, pois as palavras já não saiam articuladas mas eu ouvi-te com espantosa e estranha clareza e lucidez, que te faltava muitas vezes nos últimos tempos. É impressionante, não é? Até soltámos umas tristes e tímidas garagalhadas, a recordar a nossa vida, desde que eu era uma meninininha e tu me seguravas no colo, em passeios pelo campo, já nessa altura a fazer-me apreciar as flores e toda a natureza na sua grandiosidade e beleza. E eu, contavas tu, ao teu colo e sem andar ainda, vincava os pés com força nos ossos da tua bacia e saltava de alegria, dava pulos como se quisesse correr e acompanhar o meu irmão que ia à nossa frente a saltitar.
Recordámos muitos momentos partilhados, sem lágrimas ou tristeza, bem pelo contrário. Foi uma retrospectiva carregada de emoção e clareza também. A tua missão estava findada. E a tua família, a família que tinhas e da qual tanto te orgulhavas estava aqui contigo, nesta última hora e não te esquece. Porque é impossível esquecer quem nos marca e deixa pedacinhos de si, eternamente albergados no nosso coração. A tua forma simples de ser e viver, o teu coração, a tua gargalhada e a tua bondade, permanecerão para sempre dentro de mim. Assim como a lembrança do teu rosto macio, o cheirinho a creme Nívea, a forma como nos penteavas e depois lambias o teu dedo e passavas pela nossa testa para corrigir algum cabelo mais teimoso fora do sítio, ignorando a nossa cara de "ai que nojo". Como sorrio ao recordar-me disso agora. A tua alegria e a tua gargalhada. O deprendimento pelos bens materiais. Se tinhas duas camisas, davas uma. Se tinhas uma, rasgavas ao meio para dividires com quem nada tinha. Sempre foste assim. E amiga dos animais. E tinhas também a força e coragem da não acomodação. Sempre que estavas mal, mudavas. Sem receio de censuras, nem à luz dos anos 50 e por aí fora. Sempre fizeste o que quiseste, o que achavas melhor para ti e para quem amavas. Eu incluída. Entre outros. A fome que passaste, a luta com a tuberculose, que venceste. Os meninos que "criaste", a servir os senhores doutores em troca de favores à nossa família, qundo tudo escasseava. Os postais e as palavras que chegavam do Ultramar, sempre acompanhados de uma prendinha, no tempo que lá estiveste. O apego à vida. O cheiro do pão com café, com que fizeste tantas refeições. A simplicidade. A força para enfrentar qualquer situação, com coragem, serenidade e a sabedoria que acaba por mostrar que tudo se resolve, sempre! Ensinamentos que ficam. Ao escrever, vejo que tenho muito mais de ti do que pensava e isso agrada-me. Obrigada, Tia Lurdes.
Por fim, pedi-te para abraçares a Molly e lhe dizeres o quanto a amamos. Que um dia nos vamos todos reencontrar. Ah como as doces mentiras são necessárias para conseguirmos levantar cabeça e seguir em frente, e continuar a cumprir a nossa missão neste plano, e ainda ser feliz durante a nossa Caminhada.
Saí de lá com a certeza que partirias no dia seguinte. Tínhamos combinado. E assim foi. Cumpriste o combinado. Partiste a 11 de Fevereiro de 2023.
No dia seguinte, perguntam-me se queríamos abrir o caixão durante o "velório". Claro que sim! Estavas bonita, serena. Afinal a preparação dos mortos é uma arte e para isso se paga. Mal me abeiro do teu corpo (tu já não estavas ali), sorrio. Era como um segredo. Nós tínhamos combinado que assim seria, Tia. E assim foi. Certifiquei-me que estavas bem vestida, inspeccionei-te dos pés à cabeça, acariciei-te o cabelo sobre a testa e tentei aquecer-te as mãos pequeninas, agora repousadas uma sobre a outra e ambas sobre o teu peito, mas eu estava tão gelada quanto tu.
Segue em Paz, Tia Lurdes, um dia, estaremos juntas de novo.
1 comentário:
Muito bonito o teu texto ... tu e a Tia Lurdes tiveram sorte em ter-vos uma à outra. Beijinhos
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