Estamos em casa. Podemos estar em casa. Podemos trabalhar a partir de casa. Podemos misturar coisas como picar salsa e inalar o refogado de azeite, cebola e alho, aguçando o apetite, com vozes doces de quem amamos, com medicamentos enfiados boca abaixo de quem resiste mas sabe que é preciso ouvir este ralhete e acatar a ordem como se de enfermeira eu me tratasse, e o sucesso de uma venda de materiais tão frios e duros e gélidos como o aço brilhante e ainda soltar uma gargalhada calorosa com um cliente de topo que conseguimos conquistar muito para além dos cifrões e dos interesses económicos, num telefonema entre casas, com o riso das crianças e o latido dos cães e o chilrear dos pássaros como pano de fundo, numa melodia encantadora. Trabalhar em casa é ouvir a chuva e chorar os que não podem estar em casa. E os que estão em casa e não terão pão na mesa, porque precisamente estão em casa e o vírus roubou-lhes o pão. O pão e as pessoas que não puderam ser choradas condignamente, num enterro a solo. Estamos em casa e olhamos a chuva quando já passada a hora do trabalho, bebericamos um copo de vinho tinto e fazemos amigos sem abraços ou beijos ou palavras sequer. Apenas com pão e amor. E eles são cada vez são mais. Pequenos pardais e melros, que cantam como nunca ouvi e circundam a porta de vidro da minha cozinha que dá para o terraço, mesmo quando chove e eu choro por dentro, e embelezam o mundo com o seu canto e o seu voo e levam as migalhas que lhes ofereço todas as manhãs e noutras horas do dia, até que o Sol se deita. Para as crias, talvez, e garantir a sobrevivência e a continuidade da vida. E nesse instante o mundo fica mais belo. Como há-de voltar a ser um dia. Um mundo onde havemos de poder voltar a voar, sem medo. Um dia. Mas hoje não. Hoje é tempo de ficar em casa.
2 comentários:
O mundo mudou, 2020 !! Isto é fato
Já era tempo de atualizar isto!
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