A menina sente uma alegria gigante dentro dela. Crescente. Quase euforia. Afinal ela hoje faz anos. Oito. Foi à escola como todos os dias, enfrentando medos e desafios, e como todos os dias passou despercebida, o que se lhe tornara não só suportável, mas até agradável e muito confortável. E hoje, aquele sentimento de alegria era um segredo só dela. Uma raridadade, uma preciosidade, um segredo que a tornava verdadeiramente especial. Ela hoje fazia anos e mais ninguém sabia e apesar da alegria que sentia, a timidez não deixava que nada nela transparecesse, o que mais valorizava o "segredo".
Chegou da escola e largou a pasta vermelho escuro, já gasta e herdada do irmão. Agora com uma nova pega de couro, cozida à mão pelo avó Quico, sapateiro de profissão, o que muito a embaraçava junto dos colegas de escola, com pastas novas, brilhantes e com o inconfundível cheiro a novo a inebriar-lhe os sentidos. Ainda hoje o sente e ouve com nitidez o baralho do fecho metálico das malas deles, novinhos em folha. A dela, de fechos gastos, já não fazia aquele som e na verdade só um deles funcionava.
Mas nada disso interessava hoje. Hoje ela fazia anos. Pensou que poderia ter um prenda em casa a aguardar por ela. Como no ano passado, aquele livro de colorir, gigante, com tantas páginas e tantos desenhos bonitos. Durava até hoje, ainda com algumas figuras por colorir.
A excitação crescente cessou bruscamente, quando a mãe, cansada e já feliz por a custo ter conseguido pôr comida na mesa para os filhos hoje também, que o mês já ia longo e até o pai, sempre ausente devido aos turnos na fábrica, receber de novo, ainda faltam muitas refeições para os quatro, lhe anuncia asperamente que este ano ela não tem prenda!
Passado o choque inicial, a menina, magoada pelo tom agressivo, conforma-se e vai-se sentar à mesa para comer, em silêncio. Nem um soluço, nem uma palavra. Apenas reflecte. Sim, afinal até faz sentido. No ano anterior teve o livro para colorir, no ano anterior a esse, não teve nada, este ano, nada teve. Fazia sentido. O livro recebido no 7º aniversário, valia bem como prenda dos 6 e agora também dos 8. Sim, fazia todo o sentido. Agora, restava-lhe esperar pelo 9º aniversário e sonhar e acreditar que certamente aí, voltaria a receber uma prenda de anos.
Valem muito mais que isso.
Não importa se faço vinte, quarenta ou sessenta!
O que importa é a idade que eu sinto.
Tenho os anos de que preciso para viver livre e sem medos.
Para seguir sem medo pelo caminho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.
Para seguir sem medo pelo caminho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.
Quantos anos tenho? Isso não importa a ninguém!
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e sinto."
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e sinto."
José Saramago