O carro nem precisou do alarido de um pião propositado a meio da A2 ou da A1 ou outra A qualquer, nem de um estacionamento e abandono a meio da 25 de Abril para ser completamente abalroado e feito num oito. E eu, estendida e esmagada contra o asfalto negro, quase irreconhecível.
Os que eu ainda insisto em chamar de amigos, os poucos com coragem para se meterem no meio da auto-estrada, dançando e desafiando a sorte para evitar o choque consequente das manobras tresloucadas de um único veículo que insiste em me pisar e repisar em inúmeras manobras o corpo já inerte e desfeito no asfalto, numa amálgama de carne e sangue, conseguiram em pedaços retirar-me da via e carregarem-me para a berma. Primeiro o tronco com a cabeça pendente para trás deixando um rasto de sangue viscoso que escorre da nuca e desenha uma linha que ganha estranha forma no chão negro. Depois os membros e ainda o coração ferido trazem-no em mãos com cuidado e depositam junto ao corpo.
Vejo-os. Sob uma cortina densa que me turva a vista, vejo-os e agradeço-lhes. São poucos, como seria de esperar nesta situação, mas são alguns e estão ali a apanhar-me os pedaços e a ajudar-me a reconstruir-me.
Alguns ainda, nesta autêntica operação de busca e salvamento, foram atingidos também e mesmo apenas com alguns arranhões, depressa se põem a salvo e não mais os vejo.
Mas há os que continuam, alheios aos salpicos de sangue que esguicha agora da estrada debaixo dos pneus e que lhes sarapinta o rosto e a roupa, limpando-me o sangue que se me escapa por todos os orifícios do rosto, me apertam a mão e me dizem que vou ficar boa outra vez e poder correr, escrever, sorrir e viver.
Deitada no chão acredito neles e parece-me ouvir muito ao longe o som de uma ambulância, e agora já mais perto parece-me ver os lampejos azuis do 112. Chegaram ainda a tempo.
Dias mais tarde, no Grande Prémio do Atlântico passar-se-ia esta cena:
- Tu por aqui?! Mas ainda tens cara para andar de pé?! E vais correr?! Neste estado? Nesta situação?!
E responderia eu com naturalidade:
- Claro que vou correr! Mas existe algum motivo para deixar de o fazer?
Isto ter-se-ia passado se eu tivesse ido, mas infelizmente por vezes há motivos que nos ultrapassam e que nós por mais que corramos não os conseguimos ultrapassar.
Mas hoje, mesmo sem ter corrido, e ainda a recuperar a consciência e ao ver de novo a minha baía azul visitada nesta altura do ano pelas várias espécies de aves marinhas que descansam nas suas ilhotas, senti-me feliz. E feliz por dois singelos motivos.
É que nestes dias parece que percebi que posso perder quase tudo que pensava fundamental para a minha existência como a casa, o carro, o emprego, as corridas e até por momentos os companheiros e amigos, os sonhos e o sorriso, mas afinal nada disso tem a importância que normalmente atribuimos. Pois se é verdade que não podemos viver sozinhos e precisamos e dependemos também dos outros, não menos verdade é que a vida está em constante mudança, e na mais crua verdade só nos temos a nós próprios e o mundo para conquistar. Para perder e para ganhar. Sonhos para perder, novos sonhos por inventar. Portas que se fecham, novas portas para abrir. Assim será sempre até ao fim, o nosso fim. Sempre.