"A Mãe, Molly? Onde
está a Mãe, Molita?!" Ouço a Menina, a sua voz, clara e nítida como se
fosse hoje e eu estivesse aí agora, neste exacto instante, com vocês. Ouço-a
atentamente, como se ela me estivesse a atribuir uma tarefa importantíssima. E
estava: encontrar-te! Arrebito as orelhas e os meus olhos castanhos, com uma
expressividade única, com as minhas pestanas louras e o sobrolho a acompanharem
cada movimento ocular, procuram-te nas várias direcções possíveis, para de
seguida me levantar e começar a procurar-te com entusiasmo. E tu, escondida nos
locais mais prováveis e descobertos, e eu, pateta, passava por ti sem te ver.
Chamavam-me patetinha quando por fim eu te encontrava ou simplesmente, tu saías
do esconderijo quando eu demorava aquela eternidade, sem saberes que eu só
queria fazer durar mais a brincadeira, fazer durar mais o momento. Chamavam-me
patetinha, enchiam-me de beijos e festas e eu adorava! Brincadeiras nossas. e
eu morro de saudades delas, das brincadeiras. E vossas! Morro de saudades
vossas! Irónico. Como se eu pudesse morrer outra vez. Porque para vocês,
humanos, simples mortais, eu já estou morta e por isso não posso morrer de
novo. Mas vocês não sabem nada.
Morro de saudades, Mãe, tal
como tu morres, mas eu não gosto de te ver assim. Este é o teu momento. Vive-o
no seu esplendor! O teu momento...e como te ensinei, tu sabes que nada há mais
valioso que o momento. Momento presente. Como presente que é, com que a vida
nos brinda. Não o desperdices, Mãe. Fizeste-te forte e és forte, como o são todas
as Mães, mas não faz mal chorar. Admitir que foste derrubada, que foste vencida
pelo Cancro que me levou, e levou um pedaço de ti também, deixando marcas
inapagáveis como cicatrizes profundas. Não faz mal, assumires que te sentes
dilacerada, rasgada por dentro e que essas feridas ainda estão abertas e em
muitos dias ainda sangram.
Foram quatro meses muito duros,
em que fizeste o possível e até o impossível para o meu bem-estar. Com doses de
esperança difíceis de aceitar ou até compreender, sem tempo para desânimos ou
tristezas. Nem um segundo a desperdiçar. Vivemos cada momento desses quatro
meses, sorvendo cada instante como se fosse o último, sorvendo cada sopro de
que a vida nos permitiu usufruir. E como nós os aproveitámos, Mãe! Estiveste
sempre presente e deste-te por inteiro, como nem sabias ser capaz. Como te amo,
Mamã! Como te admiro e te amo por isso, Mãe! Foste o meu mundo, foste tudo para
mim, até ao meu último suspiro.
Agora, Mãe, continua a viver
por favor. É tempo de deixares que essas feridas, que insistes em manter
abertas, sarem de vez. É tempo de deixares de te maltratar, é tempo de te
cuidares, te amares e seguires. Mãe, não faz mal "morrer" de
saudades, mas continua a viver por favor. Por ti, pela Menina, pela Avozinha,
pelo Pipas, pelos gatos que invadiram a casa e até por aquele cãozinho que
precisa de ti e eu sei que o vais buscar, um dia, para a tua casa, para o teu
coração. Para aí, onde eu sempre estarei, no teu coração. Não podia ter tido
uma melhor Mamã. Continua o teu caminho. É o teu! Só te pude acompanhar,
fisicamente, uma parte dele, mas continuarei sempre aí, contigo, em espírito,
porque a vida é muito mais que matéria. E eu ficarei para sempre dentro de ti,
sendo parte de ti, transformada em ti, gravada em ti, pois se as nossas vidas
não se tivessem cruzado, serias tu outra pessoa hoje e eu outro cão. Mas não,
eu sou e serei sempre a tua Molly e tu a minha Mamã. E nada pode mudar isso e
por isso, eu continuarei viva, bem viva, entre vós, através e dentro de ti.
"Preciso de escrever
uma carta à Molly". Levantou-se da mesa e dirigiu-se assim ao escritório,
resoluta, como se escrever uma carta à Molly fosse uma natural e urgente
necessidade, como quem vai ali à casa de banho, ou vai ali desligar o forno,
acto que caso não fosse feito, algum resultado terrível e irrecuperável se
manifestasse... Mas é assim que é sentido. E se assim é sentido, assim é
vivido. De outra forma, a vida é uma farsa e isso não é para o nós.
Querida Molly
Não imaginas como a vida aqui
sem ti continua. Sabes? Temos agora dois gatos! Dois seres maléficos e
satânicos, como o são todos os gatos, que a menina fez o favor de trazer cá
para casa...Ah, é verdade, ainda conheceste o Timmy Boy, esse anjo revelado
mais tarde, um amor de gato, que chegou escanzelado e tímido, de olhos verdes e
grandes, a preencher-lhe grande parte do focinho, como lanternas acesas, que
assistiu a tudo. À nossa luta, às forças resgatadas de lugares desconhecidos
até ali, à esperança desgastada, à tua partida, à morte, à tristeza disfarçada
de aceitação, à dor fingida de resignação. Revelou-se um anjo, o meu Timmy, um
verdadeiro anjo, que tem uma compreensão muito para além do compreensível.
Olha-me e ele sabe e eu sei. Não precisamos falar. Ele ensinou-me a gostar de
gatos, imaginas isso Molita? Eu?! Gostar de gatos?! Pois o Timão
conquistou-me... Mas para além deste bicho, a menina trouxe também, passado
pouco tempo de tu partires, a Olívia, uma desmiolada, uma destravada, uma gata
sem juízo nenhum, uma filha rebelde, com tudo o que sempre me fez detestar
gatos. E no fundo ainda detesto, sabes? Mas a Olívia, para além desse diabrete
à solta pela casa, tem também uma faceta singular. Muito singular. Fala comigo!
Fala! Juro que fala! E depois, claro...conquistou-me também. Talvez eu tenha um
coração de manteiga. (não tenho!!!), mas esta miúda, completamente destravada,
é como uma filha rebelde. Desafiadora, sempre a testar-nos e a medir forças.
Teimosa, difícil, que dá luta e nos obriga a nunca baixar os braços, se a
quisermos educar. E nós queremos e jamais desistiremos, por muito trabalho que
dê! Como um filho! Mas depois...depois, quando ela fala comigo, eu derroto-me
completamente. A sério Molly, nunca pensei que um estúpido gato pudesse
fazer-me sentir assim, sentir isto. Amor.
É...por aqui muita coisa mudou
com a tua partida e uma delas foi a invasão da casa por estes dois felinos.
Ocuparam. O espaço, o tempo, os pensamentos. As mãos em tarefas e afagos. Ajudaram-me.
A estar ocupada. Claro que não têm nada a ver contigo! Nada! E nunca
jamais te "substituirão". Um Cão é sempre um Cão e eles são só dois
gatos. Mas esta ocupação, confesso e admito, tem-me ajudado a continuar a viver
sem ti, admito perfeitamente. Mas tu meu amor, tu estás cá sempre e para
sempre. Sabes? Eles por vezes vão-se deitar nos teus lugares preferidos da
casa, e sabes, por vezes até adoptam as tuas posições, o que não me parece nada
normal num gato, mas juro que até se parecem contigo. Claro que os lembro
sempre num tom fingido de repreensão "esse lugar é da Molly!" O teu
"lugar" jamais será ocupado! Porque tu, meu amor, és inesquecível,
única, eterna dentro de mim, e de mim para fora, nunca te esquecerei e estás
"cá" sempre e para sempre! Nem sei mesmo se algum dia conseguirei ter
outro cão...as comparações serão inevitáveis e talvez inaceitáveis e
insuportáveis...E o "pobre novo cão" não terá culpa nenhuma...Agora
gatos...perfeitamente! São "só" gatos, afinal de contas.
Olho para o calendário: 9 de
Outubro de 2021. Faz exactamente 6 meses que partiste para parte incerta. Já
não te procuro pelos montes e vales que palmilho afincadamente, ora a sorrir
ora a conter lágrimas. Encontro-te segura, serena e feliz, onde sempre
estiveste e sempre estarás: no meu coração.
Deixem-me chamar-te assim, porque assim o sinto e porque assim o sinto, assim o é! Amor! Amor! Eras só um cão pois eras... Ironia, claro. Sabem lá eles...Tu eras e és... Amor! Puro! O ser mais puro que conheci.O que eu daria para te ter de volta...
Fez ontem cinco meses que partiste, que nos deixaste, que te fiz partir, empurrei para a porta do desconhecido, e deixei de te ter material e fisicamente falando, acreditando que era o melhor para ti. Mas tu continuas em mim, viva, tão viva como qualquer outra parte de mim, como uma benção, como um sinal, cicatriz que doí e sempre irá doer e conta a história de uma vida, capítulo longo da minha vida, inapagável e feliz! Até àquele dia, até aqueles últimos quatro meses, que balançamos entre a força e a esperança e a impotência humana e o desespero e por fim a resignação, sem compreensão ou aceitação...Mas continuas a correr-me nas veias...Como se cá estivesses. E estás!
Aprendi contigo. Sempre. Até com a tua partida. Aprendi a relativizar, a seleccionar, acontecimentos e pessoas. A valorizar o que (para mim) efectivamente tem valor. A desvalorizar o que nada de facto nada vale. E tanta coisa e tanta gente, simplesmente perdeu "importância"...Cresci, meu amor, com a tua partida, claramente cresci. Mais sozinha talvez, ou apenas, apenas mais perto do que importa e de quem importa. A fazer valer cada instante da vida. Cada sopro possível. A ser feliz apenas e só pelo Agora. Como tu fazias de forma natural e extraordinária. Aprendo. Em cada memória de ti, aprendo!
Obrigada Molly
Corro montes e vales e chamo por ti! Chamo! E choro em silêncio e ninguém vê ou sabe sequer e muito menos compreende, e eu encontro-te onde sempre estiveste e sempre estarás, no lugar mais importante do mundo, no meu coração.
Molly 26/05/2009 — 9/04/2021. Farias hoje 12 anos minha pequenina. Mas o teu corpo já cá não está. Matéria transformada. Em cinzas, de volta à matéria inerte para logo se transformar de novo em vida! Em flores, árvores, borboletas, abelhas, pássaros, cão ou gato, gente ou insecto, ave ou planta, não importa, será Vida de novo!! Como o de todos nós um dia. Mas o teu espírito, a tua luz, a tua alma, a tua doçura, o teu amor, perdurará para SEMPRE em nós!!! Para SEMPRE no nosso coração! Da tua menina, uma singela e bela homenagem, meu amor:
Wish that you were here
Hoje já cá não estás. Não há festa, bolo, bananinha nem passeios especiais para festejar os 12 anos que não chegaste a fazer. Hoje não há nada. Só as lembranças e o coração cheio de um amor que guardo eternamente. Tenho muitas saudades tuas meu anjo...
Partiste há mais de um mês e eu ainda não acredito. Não
acredito, simplesmente. Ainda ontem estavas aqui e agora não estás. É só isso
que vejo, é só isso que sinto. É só isso que conta. É só isso que existe: a tua
inexistência. Onde estás Molita? Onde estás… meu amor? Faltas-me. Penosa e
dolorosamente faltas-me! Pedaço de mim em falta. Pedaço de mim ausente. Pedaço
de mim inexistente, pedaço de mim nem sequer vazio, antes inexistente.
Inexistente é a palavra mais próxima ao que sinto, pedaço de mim perdido,
irremediavelmente perdido, arrancado sem dó, sem sentido, pedaço de alma
roubado, ceifado em pouco mais de três meses e ainda assim num ápice. Tudo tão
rápido, tão dolorosamente rápido e talvez por isso a tornar-se inacreditável e
inaceitável. Ainda não acredito, não aceito, não concebo esta vida sem ti e eu
sei que terei de aceitar e continuar a viver, e eu assim faço, mas não escondo
mais, não posso esconder mais esta dor de perder parte de mim. A vida continua,
dizem, e é verdade, continua sim, mas não para ti, não para mim contigo ao lado.
Continua para mim, sim é verdade, mas sigo amputada que é como me sinto.
Faltas-me.
Dizem romanticamente que te transformaste numa estrelinha e estás lá no
céu dos cães a olhar por nós, livre de dor, liberta por fim, a correr feliz num
campo verdejante salpicado de malmequeres sob um Sol radioso e um céu azul brilhante e a
imagem é tão bonita que até nos dá vontade a todos de morrer depressa para
vivermos nesse paraíso idílico. Dizem…para que seja mais fácil a aceitação e
possamos nós seguir em frente com as nossas vidas felizes. Dizem… Eu…só sei que
tu me faltas, como membro amputado, ferida aberta em chagas e ainda assim eu
continuarei a viver, eu sei, e tenho mil e dois motivos para sorrir e ser feliz.
Ajudei-te a transpor a porta da morte, abri-a para ti meu
amor, e partiste. E eu fiquei do lado de fora, ainda do lado de cá, como dita a
lei natural da vida. E não, não vieste em sonhos dizer-me nada como me fizeram
acreditar. Que virias dizer-me que estás bem e que eu podia continuar feliz a
seguir a minha vida feliz. De consciência tranquila por ter feito tudo o que
estava ao meu alcance. Mas os dias e as noites passam e tu não voltas. Tu não
voltarás nunca mais e tudo isto parece-me ainda que não aconteceu. Foi tudo
demasiado rápido e agora resta apenas a tua falta. E a certeza de poder ter
feito muito mais Molly. Muito mais ao longo destes quase doze anos.
Sonho número um
Cerca de três semanas depois de partires, por fim, sonho
contigo. Tenho tantas saudades tuas meu amor. Eu sei que os sonhos vêm do nosso
subconsciente e só nos revelam a nossa própria alma. Os nossos medos, os
desejos, o que nos preocupa e inquieta, o que mais desejamos ou mais tememos. E
normalmente essas revelações vem sempre em linguagem simbólica. Sempre gostei
de sonhar e sonho imenso. Imenso. Como até os meus amigos mais chegados bem
sabem. E eu queria, queria muito sonhar contigo e sonhar que eras tu que me
visitavas e talvez esse sonho me apaziguasse e confortasse. Estava a demorar e
por fim “apareces-me” em sonho. No entanto, sem apaziguamento e sem qualquer
espécie de conforto possível.
Uma imagem, um flash, uns segundos. A doença. A luta. Vindas
da rua, onde teimosamente continuávamos a ir para fazer de conta que a vida seguia
o seu curso normal, sobes os três degraus das escadas da entrada no prédio, com
dificuldade como já o fazias ultimamente, vens toda torcida, trôpega e
cabisbaixa e tens fezes agarradas ao rabinho. Dor. Doença. Decadência.Impotência. Medo.
Força. Esperança. Medo. Força. Força. Muita força. Impotência. Impotência! Abraçamos
a luta desde a primeira hora e nunca houve tempo nem espaço nem forças para
desperdiçar com lágrimas, lamúrias ou tristeza. Nesse segundo sonhado, cabem os
três meses de luta desde que te foi diagnosticada a doença.
Sonho número dois, 9 de Maio
Faz precisamente um mês que partiste. Um mês. E surges-me de
novo em sonho. Desta vez, estou na rua, convivo alegremente com um grupo de jovens,
e estou bem apesar de ter consciência no próprio sonho que partiste e que já cá
não estás. Estou de férias e é Verão. Levo os jovens para a casa de férias, e animada mostro-lhes
a casa, e quando saio para o amplo jardim, surpreendentemente vejo-te! Sob o
sol brilhante, deitada na relva, à sombra de uma oliveira, está tu deitada, com
o ar mais feliz do mundo, na posição de esfinge do Egipto, elegante, sorridente,
de olhos brilhantes e língua pendurada devido ao calor e por teres por certo
andado a brincar. Estás um pouco mais magra mas o teu ar “limpo”, livre de
mazelas, feridas ou chagas, quer na pele quer nas mucosas, deixa-me tão radiante quanto surpreendida.
Mas…mas, tu estás viva?! Mas afinal tu ainda cá estás meu amor!! Perante o meu
espanto e alegria, o meu pai apressa-se a explicar “Desenterrei-a, e ela ainda
está viva e está bem!” (na verdade, nem sequer foste enterrada meu amor, o teu
corpo físico, a matéria sem vida foi entregue a correr no crematório municipal,
com o teu corpo, monte de carne e ossos e músculos, ainda quente…) Mas, mas…e
nem está suja de terra nem nada?! O meu pai apressa-se a dizer que só te sacudiu
as orelhinhas e a ponta do nariz, e que estás óptima! Afago-te as orelhas,
macias como seda e delicio-me com o brilho do teu olhar, esses olhos castanhos profundos, essas pestanhas lourinhas, e o ar saudável e feliz que tens! Oh meu deus, eu ainda tenho a minha Molly
comigo e ela está bem…oh meu deus…tenho de ligar à Maria para lhe dizer, tenho
de lhe ligar e dizer-lhe!
Acordo. A realidade mantém-se. Continuas a faltar-me.
Sonho número três
Imediatamente na noite seguinte, 10 de Maio, volto a sonhar
contigo. Queria guardar o sonho de ontem, convencer-me que estás bem, guardar
aquela imagem para sempre, que estás feliz, que ajudar-te a atravessar a porta
que todos nós atravessaremos um dia, foi o melhor que podia ter feito (e foi),
que estás agora livre de dor e estás bem, mas não, hoje apareces-me em sonho,
num local onde nunca estiveste. Estás triste, deitada no chão num passeio
imundo bem conhecido no centro da cidade. Encosto a minha cabeça à tua e lágrimas
grossas soltam-se dos teus doces olhos e correm como rios até ao chão, como se
fosses humana, lágrimas que eu precisava de soltar, soltá-las tu. Somos só nós
no mundo, todo o burburinho da cidade à nossa volta se cala e tudo o resto parece
desaparecer apesar de estarmos numa zona muito movimentada da cidade e há uma
tristeza imensurável a rodear-nos, a cercar-nos, a tolher-nos como manto negro
caído pesarosamente sobre nós.
Há um prato com frango cozido sobre a mesa da cozinha. Foi o
teu jantar ontem e hoje seria a tua refeição da manhã, comida que adoras, com
massa e um fio de azeite, mas hoje de manhã tu já não comeste, pela primeira
vez recusaste comida, e eu hoje, olho as pernas do frango, ainda por desossar e
choro, choro compulsivamente porque tu já cá não estás para as comer. E agora o
que é que faço ao frango, interrogo o Universo como se a questão fosse mesmo
essa e não estivesse apenas a disfarçar uma outra pergunta bem mais dolorosa e de
resposta imutável.
Nós encomendámos a morte. É o que parece à primeira vista.
Mas nós apenas combinámos o dia, a hora, o local e abrimos-lhe a porta,
ajudando a nossa amiga parceira na vida, de quase 12 anos, a transpô-la. Afinal
ela, a morte, já andava por aqui a rondar há imenso tempo e nós a fintá-la
enquanto pudemos. Foi assim na passada 6ª feira dia 9 de Abril de 2021. A Molly
deixou-nos. Partiu. Enquanto lhe acariciava o corpo e lhe embalava a alma com
doces palavras. Tantas. Tantas, tantas palavras. Enquanto o líquido azul bonito
a prometer o céu, lhe entrava nas veias e se espalhava pelo corpo, imobilizando
todos os músculos até ela deixar de respirar e partir por fim. De certeza que
só ouviu um terço ou menos do que a minha voz calma lhe dizia baixinho com amor.
Tanto amor Molly. Tu sabes. A Molly deixou-nos. 15h09m, 9 de Abril de 2021, e nunca
mais o chão da minha cozinha será só o chão da minha cozinha.
Fujo. Fujo. Fujo daqui. Desta casa onde vivemos, deste
pedaço de chão, frio e agora insuportavelmente vazio e limpo, antes sempre
ocupado por ti meu amor, deitada a meus pés, onde quer que eu estivesse, a “estorvar-nos”
o caminho e a obrigar-nos a dar passos de gigante só para não te pisar ou incomodar.
Fujo à velocidade que o Intercidades consegue deslocar-se no espaço e desejo e confundo
que o espaço seja o tempo. E dolorosamente, é tão vagaroso, tão mais vagaroso
do que eu queria fugir daqui, deste hoje, deste presente, deste dia, desta hora.
Ironicamente o meu lugar no comboio é um lugar “de costas” em que nos dá a
percepção de viajar “para trás”, simulação perfeita pois é para aí que eu no
fundo quero ir. É para aí que eu queria fugir. Em busca de ti meu amor, do teu
corpo quente, do teu coração a bater, do teu peito a subir e descer enquanto
dormias confirmando a respiração e descansando os meus temores nos últimos
tempos, dos teus olhos brilhantes, do teu sorriso radiante e pobre de quem não
saiba que os cães sorriem sim. Quero voltar lá atrás, para um dia qualquer destes
últimos onze anos e encontrar-te feliz e saudável ao nosso lado, onde sempre estiveste.
Queria voltar a passear contigo no jardim, dar uma volta nas hortinhas com o Byron,
cheirar o Jonas e brincar com a Kira, lembrar o Rot e o Billy e até a Fiona e o
Simba, cumprimentar o Cooper e o Fox e tolerar o jovem Sall com a sua energia estonteante
e jovial e cumprimentar o Thor de fugida. Queria voltar a ver-te passear na praia com o Alex. Queria voltar a ralhar-te por andares
sempre de nariz no chão à procura de restos de comida na rua e devorares tudo o
que era porcaria como se passasses fome em casa. Queria atirar-te bolinhas no
jardim, que depois tinha de ser eu a ir apanhá-las (nunca foste desses cães ágeis,
atléticos e espertos que trazem a bolinha de volta para o dono a voltar a
lançar. Normalmente corrias para a ir apanhar, mas depois largavas,
entretendo-te de imediato com qualquer outra atracção perto do local onde a
bola caía, fosse um pau, uma cana ou simplesmente o acto de arrancar erva com
os dentes com um interesse fantástico e único. Queria voltar aos dias em que
nos trazias da rua, uma bola velha ou um brinquedo esquecido ou perdido no meio
da erva, e eu cansada, já desistira de te contrariar. Temos vários cá em casa,
que depois de lavados, faziam e fazem parte dos teus brinquedos. Queria voltar
aos dias de praia, aos dias que nadavas comigo no mar, em que paciente aguardavas
que o Pipas partilhasse a merenda contigo, aos dias na piscina, onde não
entravas mas do lado de fora jogavas à bola connosco lá dentro. Queria voltar
aos dias em que acompanhavas a menina a correr no Parque de Santa Iria. Aos
dias em que te sujavas de lama. Aos dias em que te plantavas à beira da mesa quando
a avozinha tomava o pequeno-almoço ou a qualquer outra das refeições da família
onde pertences e pertencerás para sempre, na esperança de alguém te dar um
pouco de pãozinho ou de broa de milho que adoravas. Até aos dias por uma razão
ou outra menos felizes, mas em que a tua presença me apaziguava e confortava de
forma absolutamente única e genuína.
Mas não, a vida não anda para trás e assim como este comboio
não anda para trás e jamais volta a passar num local e tempo onde já passou, nenhum
desses dias volta, nem eu nem tu podemos voltar a eles.
Agora, hoje, neste exacto momento chamado presente, tu já cá
não estás e está apenas um prato com frango cozido sobre a mesa da cozinha, e
eu ao olhá-lo, choro, choro em silêncio porque assim tem de ser, mas com uma
dor e desespero sem consolo possível, que nunca pensei que um prato de frango
cozido sobre uma mesa branca de cozinha pudesse desencadear.
Não sei como voltará a ser a vida para todos nós, nesta casa,
sem ti. Saberemos em breve.
Dormimos juntas a última noite. Lado a lado no chão. Ouvi-te
sem falhar um minuto, a tua respiração, cada inspiração e cada expiração, o
bater do coração, os movimentos peristálticos, tão pouco “poéticos”, mas é deles
que é feito o cancro, de merda e de sangue, e de postas de carne viva a saírem de
ti, de feridas e pus, de fluidos de odor nauseabundo, de podridão e decadência,
de lágrimas de sangue, de olhos baços cansados. E se depois da decisão tomada
na véspera ainda me surgiram algumas dúvidas ao fim do dia, hoje, depois de te acompanhar
de perto, tão perto que mais perto só seria possível dentro de ti e acho que
foi mesmo aí onde eu estive, dentro de ti, toda a longa e dolorosa noite, aos
primeiros raios de Sol, todas as dúvidas se dissiparam. O teu bem-estar, o teu
conforto, a tua alegria por viver, por estar cá, connosco, foram sempre, mas
sempre a minha única prioridade e objectivo desde o início desta batalha. Mas a
noite, com inúmeras interrupções em que tive de te ajudar a levantar para ires
ao terraço fazer necessidades, os teus olhos sem vivacidade, a tua boca inflamada,
tudo o que era mucosa quase em carne viva e a tua recusa em comer pela 1ª vez
desde que travámos juntas esta batalha, deram-me todas as certezas de que estávamos
a fazer o que tinha de ser feito. Já não estaríamos a prolongar-te a vida, mas
sim a prolongar o teu sofrimento e isso eu não ia permitir. Não mais. Por isso,
quando o dia clareou, só implorava que a Drª não demorasse muito mais para acabar
com o teu sofrimento o quanto antes.
De 2ª a 6ª feira o cancro galopou desenfreado, qual besta desencabrestada, com uma velocidade que não acreditava
ser possível, e nesta que seria a semana da tua 5ª sessão de quimioterapia, a
batalha estava perdida. Se de início, em Janeiro, começamos o tratamento com
quase toda a esperança do mundo, ao longo das semanas fomos percebendo que
apesar de todos os nossos esforços e do teu corpo se manter relativamente forte
e estável para continuar a lutar e aguentar o choque do tratamento, ele, o cancro,
foi-nos sempre ganhando aos pontos, primeiro em silêncio e por fim da forma gritante
e alarmante que descrevi. Sempre um passo à nossa frente e nós a corrermos
atrás, reparando os danos, acreditando sempre que o dia seguinte seria melhor,
e às vezes era. Até ele nos vencer por fim. Caímos derrotadas. E agora
descansas, livre de todo o sofrimento.
Questiono-me de algumas coisas. E
respondo-me. Se terá valido a pena toda esta luta? Claro que sim, se havia uma
hipótese de sucesso, uma única hipótese em mil…tínhamos de tentar e lutar por
ela. E nós lutámos! Juntas! Se deveria ter-te “libertado” mais cedo? Não,
enquanto te senti “cá”, connosco, a lutar ao nosso lado, lutei contigo e nunca
desisti de ti, por muito “fácil” e “confortável” que poderia ter sido para mim,
acabar contigo e alegar para conforto do meu ego que “foi o melhor para ti”
quando na verdade saberia que a verdade é que o teria feito por ser o melhor
para mim, e eu, pus-te sempre em primeiro lugar e continuaria a fazer tudo de
novo e mais que fosse, por ti, se soubéssemos que ainda havia esperança e que o
saldo na balança era positivo. Se, se, se…Revejo minuciosamente todos os passos
que demos lado a lado e faria tudo de novo, com a mesma esperança, com a mesma
fé, com a mesma alegria que partilhavas comigo, que me ensinasse a sentir, por
cada segundo de vida em que éramos felizes, só por estarmos aqui! Perante as adversidades,
as partidas que a vida na prega, os desafios que nos lança e as provas que nos exige
sem passar diploma no final, temos de erguer a cabeça, lutar, ter fé, esperança,
munirmo-nos de todos os aliados possíveis e fazer o que tiver de ser feito com
um único objectivo em mente: o teu bem-estar, a tua alegria de viver, o teu
conforto, ignorando a dor que isso nos causa a nós próprios. Porque tu meu anjo,
mereceste tudo de mim, e tudo de mim eu te dei. Até ao último dia.
Foram tempos duros, muito duros, a ver
o cancro ganhar terreno, a ver-te degradar aos poucos desde Janeiro, ainda que
com algumas conquistas a alimentar-nos a esperança para de seguida serem de
novo resgatadas pelo cancro, e de forma assustadoramente rápida e sem dar tréguas
ou ilusões, nesta última semana.
Foi uma prova muito dura meu amor e
tu passaste com excelência até ao limite do possível. Lutaste com alegria e
viveste com alegria, dando-nos lições de vida, ensinamentos básicos que esquecemos,
tão simples como aproveitar a vida, dar o melhor de nós, lutar e acreditar
sempre e ser feliz com o que temos e com o que a vida nos oferece e fazer os outros
felizes e buscar neles o seu melhor também. E tu foste mestre e eu aprendiz. Só
espero não te desiludir, ter estado e continuar a estar, à tua altura. E continuar
a viver mais rica, porque me ofereceste quase 12 anos da tua vida, a fazer-me
feliz meu amor. E perdoa-me por alguma que deveria ter feito de forma diferente
e não o fiz porque não soube.
Foste o cãozinho mais doce e corajoso
que conheci. E eu…fui só a tua mamã, aquela que ama, que cuida e privilegia
acima de tudo e dela própria, o teu bem-estar. Sempre por ti, muitas horas,
literalmente ao teu lado, até ao teu último suspiro.
Até já meu amor. Estás para sempre no
meu coração.
Molly, 26-05-2009 – 09-04-2021
Roubada da minha vida pelo Linfoma
Cutâneo, tipo T
Ps: Um agradecimento muito especial, directo
do coração, ao Dr. José Martins (Hospital Veterinário de Berna) pela sua permanente
disponibilidade, apoio, acompanhamento e orientação clínica e admirável
humanidade; à Drª Sónia Ribeiro (VetLonga), por todos estes anos a acompanhar a
Molly e …por tudo, à Drª Joana e à Drª Georgiana (Vip Pets), à Drª Sara; à Daniele
e à Inês (VetLonga) e a todos que de uma forma ou outra estiveram connosco nesta
luta desigual.
Aos amigos que fizemos, muitos sem
nos conhecerem pessoalmente e ainda assim torceram por nós, a nossa maior gratidão
Dizem que vocês nos dizem. Não sei se dizem. Dizem, Molly? Quando é chegada a hora?
Será que o Bob disse ao seu doninho de manhã, quando juntos foram tomar banho ao rio e por isso ele o mandou abater a seguir ao almoço, logo depois do café e da cigarrilha? Será que ele lhe disse, Molly, entre salpicos de água fresca e mergulhos? Não sei querida, não sei...Só sei que nós...nós, ainda não podemos ir ao rio...
Quero guardar-te. Guardar todos os momentos. Todos os olhares, todo o carinho, cumplicidade, partilha, companhia que somos. Guardar-te em mim.
Como hoje. Ainda não eram sete da amanhã e sinto-te. Sem ruído, latido ou gemido. Simplesmente sinto-te. E desperto. Como se a tua alma falasse com a minha, ainda adormecida, sacudindo tão suavemente o meu ombro como abanavas a tua cauda e me despertasse do sono da noite. Desperto. Abro os olhos e tenho-te a um palmo do meu nariz, simplesmente a olhar-me.
Levanto-me ainda meio a dormir e vou abrir a porta do terraço onde vais fazer xixi. Voltas para a cozinha e ficas parada de pé a olhar-me. Ainda é tão cedo mas eu ouço-te e sei que o pequeno almoço, especialmente confeccionado para ti na véspera, já seria bem-vindo. Carne de vaca picada, estufada com óleo de coco, courgete, cenoura, beterraba, salsa e um pouco de arroz branco. Comes com apetite, valha-nos isso meu bem. Sem esquecer os cinco comprimidos que tens de tomar e que um a um, certifico-me que são engolidos. Depois limpo-te a boca e finjo não ver o evidente: ele, inimigo silencioso, continua presente, e teima em afirmar-se, como a dizer-nos que tudo o que fazemos será inútil. As gengivas voltam a inflamar, assim como os teus olhinhos, com as mucosas a insinuar-se, anormalmente vermelhas de novo. Mas ele, o cancro, está enganado e o teu olhar, doce, cheio de amor sincero e puro, jamais será roubado. E para vê-lo, uma vez mais que seja, tudo o que faço vale a pena sim! E eu quero guardá-lo. Esse olhar. Guardar este momento, estes nossos momentos, de partilha e amor, dos quais suspeito ter de me alimentar, daqui a pouco ou daqui a muito quando ficar sem ti, completamente sozinha. Sinto um elo entre nós, forte e sólido como corrente grossa e pesada e no entanto invisível, tão invisível que alguns dirão mesmo que é inexistente, só porque eles não vêem. Só porque o mais importante é invisível aos olhos, meu amor e eles não vêem, não conseguem ver.
Mas eu vejo e tu vês. Este sentimento de amor puro, inigualável ou comparável com qualquer outro que tenha vivido, e eu já vivi alguns. Exagerado, dirão alguns. Porque tu és "só" um cão, dirão. Quão enganados estão meu amor.
Esta semana foi a tua 3ª sessão de quimioterapia e tu, guerreira valente, aguentas de pé, forte e firme, como se suportasses tudo só para me veres feliz e continuares ao meu lado. És uma valente e é essa a mensagem que me passas, mas meu amor, eu vejo, eu sei que não estás bem.
Por isso guardo, guardo a sete chaves estas gotas de vida que continuamos a partilhar, guardo com amor e fé, sim, muita fé que ainda vais ganhar esta batalha e viver connosco muitos momentos felizes. Vais correr no parque, vais de férias connosco, vais correr na praia, vais brincar com os amigos no jardim, vais jogar à bola com a mamã na piscina, vais, vais... vais ainda viver connosco muitos dias bons e felizes.
E todos eles e este, e ontem e amanhã, eu vou guardar. Assim. No lugar mais seguro do meu coração, só acessivel a muitos poucos. Assim, bem guardados. Como se guardam as preciosidades da vida.
Esta
noite estiveste inquieta. Muito inquieta. Não sossegavas de forma
alguma. Saías da tua caminha e vinhas deitar-te no chão, aos pés da minha cama.
Lambes feridas que teimam em reaparecer agora depois da 2ª sessão de quimioterapia e os tecidos inflamados regressam,
invadindo os espaços sãos do teu corpo. Tens a respiração ofegante, levantas-te
e pedes para ir ao terraço, onde, ao invés de um qualquer e habitual alívio da
bexiga, acabas por simplesmente ficar estagnada de pé, a olhar o céu negro sob
a doce chuva morna que de mansinho nos caía em cima e incrivelmente nos sabe
tão bem. Uma vez mais, contigo aprendo a saborear o momento, por mais singelo e
vulgar que pareça, e encontrar nele o significado da vida. Da minha vida, pelo
menos. Vens para dentro, bebes água, afago-te o pêlo com uma toalha,
limpando-te, e vais para a tua caminha onde não ficas mais que escassos minutos,
para te ires deitar de novo no chão, aos pés da minha cama, onde também não
descansas e depressa te levantas para mudar de lugar e posição.
Passo
a noite em sobressalto. Como sobressaltada tenho vivido desde há um bom tempo
para cá. Parece que tenho sempre o coração nas mãos e a qualquer momento se
pode partir irremediável e definitivamente.
Mesmo
antes de termos tido a confirmação, já sabíamos que o prognóstico não seria bom,
conforme se veio a confirmar: Linfoma T, que te ataca tudo o que é mucosa. O resultado veio precisamente na
véspera de Natal, dia 24 de Dezembro de 2020, mas a Doutora não nos quis dar a notícia
antes do Natal, como se ainda fosse possível passarmos o Natal felizes e descansados. Mas não, não era possível, porque nós, sem saber, já sabíamos.
Hoje
acordaste triste. Mas não precisei de te chamar para irmos à rua. Vieste ter
comigo à cozinha e saímos bem cedo para a rua. Noite ainda. E que custoso foi
este passeio hoje, meu amor. Caminhas muito devagarinho, meio trôpega, quase a
tropeçar nas tuas próprias patas. E depois…aquele olhar! Aquele olhar, querida
Molly, que eu não quero aceitar e finjo não compreender. Insisto e incentivo-te
a caminhar e tu lá vens, muito devagarinho. Fazes as tuas necessidades e por
fim chegámos a casa, de uma voltinha que pareceu interminável hoje. E aquele olhar
Molly, aquele olhar…Que me trespassa o coração e me deixa sem palavras. Apenas
te acaricio e minto-te descaramente dizendo que vais ficar boa, meu amor. Mas tu e eu
sabemos que é mentira. Mas também sabemos que tem de ser assim meu amor. Até ao
fim. Acreditar mesmo, que este dia vai ser bom e que temos este momentopara partilhar e viver! E isso, meu amor, isso,
é mesmo verdade e é a esta verdade que nos agarramose é esta verdade que nos faz acreditar e
lutar, dar o melhor de nós em cada dia para fazer deste dia, um dia melhor. E
assim será. E amanhã um outro dia. Melhor talvez…
Que guardas de mim? Que vês?
Que guardas de mim e levas contigo meu amor?
Eu de ti guardo já onze anos de
muitas alegrias, traquinices, companheirismo, lealdade, dedicação, cumplicidade,
partilha e também algumas preocupações, despesas, trabalho, mas
indiscutivelmente sobressai do saldo, amor, muito amor.
E tu? Que guardas de mim?
Quando me olhas assim, nestas madrugadas frias no Outono da vida, em que vamos
ao jardim, nesse momento só nosso tal como o jardim, as árvores e os melros e
pardais que acordam e nos rodeiam saltitando e esvoaçando, indiferentes aos
nossos teatros mal ensaiados, nestes momentos parados no tempo, em que sou só
eu e tu e tudo o resto se cala, olhas-me como nunca me olhaste. Ficas parada
sem te mexer, buscas-me os olhos e fixas-me o olhar, bem directa aos meus olhos
e entras em mim como nunca o fizeste, atravessas carne e ossos e músculos
dilacerando veias e rasgando carne e músculos e órgãos e tendões e chegas ao
coração e vais mesmo além dele, despedaçando-o, sangrando e tocas-me a alma e
eu nesse momento sei. Simplesmente sei. Agacho-me e afago-te a cabeça, o
pescoço, percorro a mão pelo teu corpo quente, estranho as saliências dos ossos
que no dia anterior não estavam lá e termino na pontinha da pata traseira ou da
cauda, para retomar a carícia na cabeça e repetir o gesto vezes sem conta na
madrugada fria e falo-te. Não só com os olhos e a alma, mas com palavras também
porque tu entendes. Entendes tudo. Não te deixarei aqui meu amor, nem penses
que te deixo aqui, nem penses que te deixo desistir, nunca te deixarei meu
amor. Nem neste relvado gelado onde te deitas, te recusas a andar e mexer, e
imóvel pareces implorar-me o que eu não te consigo dar. Não princesa Molly,
nunca te deixarei e nós não vamos desistir. E se tens de ir, leva-me contigo
meu amor, leva-me aos pedaços contigo, arranca pedaços de carne deste coração e
leva-me, leva-me contigo meu amor. Porque eu nunca te deixarei e porque quando
existe amor, nunca há separação ou despedida possível. Sei que assim será.
Quando chegar o dia levarás pedaços de mim. E eu, guardo já pedaços de ti
dentro de mim, tantos, tantos, meu amor.
Amanhã outro dia minha
pequenina. Somos fortes e vamos vencer esta batalha. Cada dia uma batalha e nós
estamos juntas e somos fortes. E cada dia é uma bênção e uma vitória. E ainda
temos muitas histórias para viver juntas minha pequenina, ouviste?!
Muito feliz por te ter na minha
vida, minha doce Molly.