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domingo, 21 de fevereiro de 2021

Quero guardar-te

Quero guardar-te. Guardar todos os momentos. Todos os olhares, todo o carinho, cumplicidade, partilha, companhia que somos. Guardar-te em mim.
Como hoje. Ainda não eram sete da amanhã e sinto-te. Sem ruído, latido ou gemido. Simplesmente sinto-te. E desperto. Como se a tua alma falasse com a minha, ainda adormecida, sacudindo tão suavemente o meu ombro como abanavas a tua cauda e me despertasse do sono da noite. Desperto. Abro os olhos e tenho-te a um palmo do meu nariz, simplesmente a olhar-me.
Levanto-me ainda meio a dormir e vou abrir a porta do terraço onde vais fazer xixi. Voltas para a cozinha e ficas parada de pé a olhar-me. Ainda é tão cedo mas eu ouço-te e sei que o pequeno almoço, especialmente confeccionado para ti na véspera, já seria bem-vindo.  Carne de vaca picada, estufada com óleo de coco, courgete, cenoura, beterraba, salsa e um pouco de arroz branco. Comes com apetite, valha-nos isso meu bem. Sem esquecer os cinco comprimidos que tens de tomar e que um a um, certifico-me que são engolidos. Depois limpo-te a boca e finjo não ver o evidente: ele, inimigo silencioso, continua presente, e teima em afirmar-se, como a dizer-nos que tudo o que fazemos será inútil. As gengivas voltam a inflamar, assim como os teus olhinhos, com as mucosas a insinuar-se, anormalmente vermelhas de novo. Mas ele, o cancro, está enganado e o teu olhar, doce, cheio de amor sincero e puro, jamais será roubado. E para vê-lo, uma vez mais que seja, tudo o que faço vale a pena sim! E eu quero guardá-lo. Esse olhar. Guardar este momento, estes nossos momentos, de partilha e amor, dos quais suspeito ter de me alimentar, daqui a pouco ou daqui a muito quando ficar sem ti, completamente sozinha. Sinto um elo entre nós, forte e sólido como corrente grossa e pesada e no entanto invisível, tão invisível que alguns dirão mesmo que é inexistente, só porque eles não vêem. Só porque o mais importante é invisível aos olhos, meu amor e eles não vêem, não conseguem ver.
Mas eu vejo e tu vês. Este sentimento de amor puro, inigualável ou comparável com qualquer outro que tenha vivido, e eu já vivi alguns. Exagerado, dirão alguns. Porque tu és "só" um cão, dirão. Quão enganados estão meu amor.
Esta semana foi a tua 3ª sessão de quimioterapia e tu, guerreira valente, aguentas de pé, forte e firme, como se suportasses tudo só para me veres feliz e continuares ao meu lado. És uma valente e é essa a mensagem que me passas, mas meu amor, eu vejo, eu sei que não estás bem.
Por isso guardo, guardo a sete chaves estas gotas de vida que continuamos a partilhar, guardo com amor e fé, sim, muita fé que ainda vais ganhar esta batalha e viver connosco muitos momentos felizes. Vais correr no parque, vais de férias connosco, vais correr na praia, vais brincar com os amigos no jardim, vais jogar à bola com a mamã na piscina, vais, vais... vais ainda viver connosco muitos dias bons e felizes.
E todos eles e este, e ontem e amanhã, eu vou guardar. Assim. No lugar mais seguro do meu coração, só acessivel a muitos poucos. Assim, bem guardados. Como se guardam as preciosidades da vida.











quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Aquele olhar

Esta noite estiveste inquieta. Muito inquieta. Não sossegavas de forma alguma. Saías da tua caminha e vinhas deitar-te no chão, aos pés da minha cama. Lambes feridas que teimam em reaparecer agora depois da 2ª sessão de quimioterapia e os tecidos inflamados regressam, invadindo os espaços sãos do teu corpo. Tens a respiração ofegante, levantas-te e pedes para ir ao terraço, onde, ao invés de um qualquer e habitual alívio da bexiga, acabas por simplesmente ficar estagnada de pé, a olhar o céu negro sob a doce chuva morna que de mansinho nos caía em cima e incrivelmente nos sabe tão bem. Uma vez mais, contigo aprendo a saborear o momento, por mais singelo e vulgar que pareça, e encontrar nele o significado da vida. Da minha vida, pelo menos. Vens para dentro, bebes água, afago-te o pêlo com uma toalha, limpando-te, e vais para a tua caminha onde não ficas mais que escassos minutos, para te ires deitar de novo no chão, aos pés da minha cama, onde também não descansas e depressa te levantas para mudar de lugar e posição.

Passo a noite em sobressalto. Como sobressaltada tenho vivido desde há um bom tempo para cá. Parece que tenho sempre o coração nas mãos e a qualquer momento se pode partir irremediável e definitivamente.

Mesmo antes de termos tido a confirmação, já sabíamos que o prognóstico não seria bom, conforme se veio a confirmar: Linfoma T, que te ataca tudo o que é mucosa. O resultado veio precisamente na véspera de Natal, dia 24 de Dezembro de 2020, mas a Doutora não nos quis dar a notícia antes do Natal, como se ainda fosse possível passarmos o Natal felizes e descansados. Mas não, não era possível, porque nós, sem saber, já sabíamos.

Hoje acordaste triste. Mas não precisei de te chamar para irmos à rua. Vieste ter comigo à cozinha e saímos bem cedo para a rua. Noite ainda. E que custoso foi este passeio hoje, meu amor. Caminhas muito devagarinho, meio trôpega, quase a tropeçar nas tuas próprias patas. E depois…aquele olhar! Aquele olhar, querida Molly, que eu não quero aceitar e finjo não compreender. Insisto e incentivo-te a caminhar e tu lá vens, muito devagarinho. Fazes as tuas necessidades e por fim chegámos a casa, de uma voltinha que pareceu interminável hoje. E aquele olhar Molly, aquele olhar…Que me trespassa o coração e me deixa sem palavras. Apenas te acaricio e minto-te descaramente dizendo que vais ficar boa, meu amor.  Mas tu e eu sabemos que é mentira. Mas também sabemos que tem de ser assim meu amor. Até ao fim. Acreditar mesmo, que este dia vai ser bom e que temos este momento  para partilhar e viver! E isso, meu amor, isso, é mesmo verdade e é a esta verdade que nos agarramos  e é esta verdade que nos faz acreditar e lutar, dar o melhor de nós em cada dia para fazer deste dia, um dia melhor. E assim será. E amanhã um outro dia. Melhor talvez…